segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 49

MARÇO, TEU NOME É MULHER



Curioso que Março seja o mês cujo nome originalmente seja dedicado ao Deus da Guerra. Marte. E que seja justamente nesse mês que se comemora o Dia Internacional da Mulher. Graças ao Dia 8 de março de 1857, naquela fábrica de tecidos em Nova Iorque.
Mulher, cantada pelos trovadores, atualmente nas letras terríveis e vulgares é cachorra. Mulher, já foi onça, já foi bruxa, já foi máquina, e atualmente é fruta. Melancia, Pera... Disforme, deselegante, plena anomalia, como se ignorasse o olhar do homem autêntico, que reconhece a graça, a formosura e a cadência do corpo e do andar feminino.
Mulher é valente. Menina travessa, serelepe, criança correndo ao vento, será mulher livre no pensamento, sem mordaças...
É incrível que numa era de tantas conquistas a mulher ainda seja vítima da violência, da brutalidade masculina, e oprimida, às vezes por uma sociedade, por uma religião. A luta da mulher é sempre mais ampla, a sua dor é sempre mais aguda...
Já pensou na agudeza da dor de uma mulher que se tornou mãe e vê seu filho partir para a guerra? E a guerra aqui é a metáfora mais perfeita da morte, pois ela pode acontecer na rua, lá, depois da esquina, quando seu filho se torna um viciado ou qualquer outra infelicidade.
Mulher, namorada, mulher operária, mulher explorada, mulher Presidente da República. O tempo é dela, a luz é dela, da mulher, afinal é ela quem traz a vida à luz.
A perversidade de uma sociedade machista e patriarcal resiste em plena era da informática. Mas ela resiste, pois será sempre uma guerreira, um lírio branco. Ela resiste porque é da sua natureza resistir. O ser mais temido pelo homem autoritário é justamente ela.
E o Dia 8 de Março? Teremos neste ano a terça de carnaval. As sambistas, as passistas, as porta-bandeiras, todas na avenida, para deleite e cobiça dos olhos... São as mesmas valentes guerreiras que estão nas salas de aula ensinando o futuro às crianças, estão nas fábricas e nas caixas registradoras das lojas... Aos que se iludem ainda pensando que mulher é boneca, terão que se acostumar com a ideia de que mulher pensa, sofre, sente, vive, respira, ama, e quer amor.
Que no dia 8 de março, não faltem bombons, flores, carícias, abraços, sorrisos, companheirismo, cinema, mas também reflexão.

MARCIANO VASQUES

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Você conhece?

O Sermão da montanha
(*versão para educadores*)



Naquele tempo, Jesus subiu a um monte seguido pela multidão e, sentado
sobre uma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se
aproximassem.
Ele os preparava para serem os educadores capazes de transmitir a
lição da Boa Nova a todos os homens.

Tomando a palavra, disse-lhes:

- "Em verdade, em verdade vos digo:
Felizes os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque eles..."


Pedro o interrompeu:
- Mestre, vamos ter que saber isso de cor?
André perguntou:
- É pra copiar?
Filipe lamentou-se:
- Esqueci meu papiro!

Bartolomeu, quis saber:
- Vai cair na prova?
João levantou a mão:
- Posso ir ao banheiro?

Judas Iscariotes resmungou:
- O que é que a gente vai ganhar com isso?
Judas Tadeu, defendeu-se:
- Foi o outro Judas que perguntou!
Tomé questionou:
- Tem uma fórmula pra provar que isso tá certo?

Tiago Maior indagou:
- Vai valer nota?

Tiago Menor reclamou:
- Não ouvi nada, com esse grandão na minha frente.

Simão Zelote gritou, nervoso:
- Mas porque é que não dá logo a resposta e pronto!?

Mateus queixou-se:
- Eu não entendi nada, ninguém entendeu nada!

Um dos fariseus, que nunca tinha estado diante de uma multidão, nem
ensinado nada a ninguém, tomou a palavra e dirigiu-se a Jesus,
dizendo:
- Isso que o senhor está fazendo é uma aula? Onde está o seu plano de
curso e a avaliação diagnóstica? Quais são os objetivos gerais e
específicos? Quais são as suas estratégias para o levantamento dos
conhecimentos prévios?

Caifás emendou:
- Fez uma programação que inclua os temas transversais e atividades
integradoras com outras disciplinas? E os espaços para incluir os
parâmetros curriculares gerais? Elaborou os conteúdos conceituais,
procedimentais e atitudinais?

Pilatos, sentado lá no fundão, disse a Jesus:
- Quero ver as avaliações da primeira, segunda e terceira etapas e
reservo-me o direito de, ao final, aumentar as notas dos seus
discípulos para que se cumpram as promessas do Imperador de um ensino
de qualidade. Nem pensar em números e estatísticas que coloquem em
dúvida a eficácia do nosso projeto.
E vê lá se não vai reprovar alguém! Lembre-se que você ainda não é
professor titular...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Convite para concerto em auxílio às vítimas da enchente




Queridos amigos,

Compareçam ao concerto onde serão executadas três maravilhosas cantatas de Bach, uma delas com solo do meu filho, o barítono Daniel Marchi.
Aguardo vocês lá.
Obrigada,
Um beijo,
Regina Sornani

domingo, 20 de fevereiro de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 48

Marciano Vasques
  

QUEM FAZ O QUE PODE FAZ POUCO


 
Alguns se surpreendem quando exponho o meu lema de vida, outros concordam imediatamente. “Quem faz o que pode faz pouco!” É assim que penso, esse é o barco que vou remando.

Quem faz o que pode faz pouco! É normal pessoas apresentarem justificativas para o “dever” não cumprido. Às vezes um amigo se aproxima e diz que não teve culpa da mancada, que fez o que pode. “Sinto muito, fiz o que eu pude!”. Quando isso acontecer, responda: “Fez pouco!”.

Qual o mérito em se fazer apenas o que pode? Não deixa de ter a sua louvação, é evidente, mas fazer o que se pode, sempre é mais fácil. Todos podem fazer, qualquer um faz. O possível está sempre dentro da possibilidade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Viva a Poesia!

Olá, pessoal querido!

UMA HISTÓRIA DO OUTRO MUNDO

Esse livro foi publicado pela Cortez e tem ilustrações do Marchi.
O texto fala sobre o encontro de dois fantasmas: Romeu e Julieta e sobre a parceria feita por eles para cantar no Fanfau: Fantástico Festival Assombrado Universal.
Segue um pequeno trecho.

"Romeu, o fantasma cantor, para passar o tempo, resolveu subir numa árvore e começou a compor:

Daqui de cima, vejo tudo escuro
Um gato preto andando no muro.
Um pobre cão virando lata
E a solidão me mnaltrata.
Sou um fantasma sozinho.
Quem irá cruzar o meu caminho?


Mal sabia o suspiroso Romeu que aquela noite seria de sorte e que sua vida de fantasma solitário iria terminar. Ora, aconteceu que um grupo de fantasmas boêmios que perambulava pela noite resolveu parar para ouvir aquela cantoria".


E a história continua, de forma divertida, misturando fantasmas, vampiros, a múmia, o saci e até a mula sem cabeça. É diversão na certa.

Um forte abraço,

Regina Sormani

Mensagem

As noites desestreladas
Simone Pedersen

Quem nunca observou um filtro? Dos antigos, de barro que deixavam a água com um sabor inesquecível, diferente dos modernos e tecnológicos filtros acoplados diretamente à passagem da água. Alguns filtros são transparentes, para o nosso deleite. Podemos observar as impurezas contidas nas pedras ou areia e a água cristalina trazendo saúde e bem-estar. O ser humano tem um corpo fantástico que funciona de formas ainda não totalmente explicadas.
Conhecemos apenas o que a experiência nos ensinou e a ciência comprovou: para evitarmos doenças temos que evitar a ingestão de substâncias tóxicas. Higiene, boa alimentação e exercícios são fundamentais. O mesmo serve para nossa saúde mental: para evitarmos doenças temos que, em primeiro lugar, evitar a ingestão de pensamentos sujos ou tóxicos. Temos que desenvolver um filtro natural. Vivemos em um mundo injusto e maldade contamina. A indignação só tem serventia se for usada para gerar atitudes concretas e transformadoras, como vimos no Egito, recentemente. Reclamar aos quatro ventos não muda a previsão do tempo. Ou você procura a pessoa diretamente e sugere uma transformação, ou melhor, não reclame e use esse tempo – e energia – em algo construtivo e do bem.
Não é fácil. Muitas pessoas não são capazes de ouvir críticas, vivem em uma bolha e acreditam ser a própria perfeição, superiores aos outros e em posição de criticar toda a humanidade. Como os músculos atrofiam se não forem exercitados, a boa vontade atrofia se não for usada enquanto fortalecemos a maledicência. Vivemos tempos em que as pessoas voam, elevadas por egos inflados ou caem em depressão quando a realidade se apresenta, provando que suas asas não são tão especiais assim. Outras aprenderam a usar o fogo da boca como dragões medievais: queimam toda a alegria de quem está próximo. Triste de dar dó.
A mídia nos mostra crueldades piores que as da pré-história, quando se matava para sobreviver e não por prazer. Esse é o papel da imprensa, mostrar a realidade e lutar pela justiça, denunciar os criminosos, apurar os fatos. Os filtros pessoais têm a finalidade de nos poupar, o quanto for possível, desse imenso desgaste cotidiano, que mina nossa energia e afeta nosso equilíbrio e energia. Ele nos afasta das pessoas que só trazem tempestades em nossas vidas. Cabe a cada um de nós a escolha: ser a água suja, a areia que tudo suga ou a água límpida.
O pensamento é a água. Somos seres líquidos, fluídos e leves por natureza. As impurezas retidas nos tornam pessoas pesadas de rancor que se arrastam por imundícies, borrifando lama em todos que se aproximam. Não permita que seus pensamentos sombrios o dominem e o transformem em fonte de água escura que contamina quem dela bebe. Faça uma faxina mental e espiritual, deixe a inveja, o ódio, o egocentrismo e a competição de lado. Dome o ego como se encanta um animal selvagem, aos poucos, com muita paciência e amor. Um pensamento doentio é forte o suficiente para domar a mente, se você não for mais forte que ele.
Quantas vidas serão mais saudáveis por causa do seu filtro? Na hora da injustiça, se puder agir concretamente, o faça. Ações são importantes e ninguém deve ser omisso. Mas, não perca o seu dia nem a sua vida reclamando dos outros, conhecidos ou pessoas públicas, focando somente no que há de errado no mundo. Gosto dos japoneses, eles trabalham muito e falam pouco.
Quanto tempo se perde em um dia falando mal da vizinha, do primo, do político, do jogador de futebol, da comida salgada, da sujeira que o vento trouxe? Nós todos temos uma sombra dentro de nós, faminta e desesperada. Ela se fortifica de palavras malignas, que percorrem todo o corpo, escurecem a mente, o coração e os olhos, tornando dias em noites eternas e desestreladas. Quando soltas, são aves selvagens, costumo dizer, e não regressam nunca mais. Saem desenfreadas, machucando por onde passam, ferindo e deixando cicatrizes com suas afiadas e sujas garras.
Alimente as palavras-aves com muito cuidado, para que elas não fujam da sua boca. A palavra mal dita (maldita?) pode ser perdoada, mas nunca será esquecida. Destrói relações, consome simpatias, afasta as pessoas e prolifera descontroladamente, fazendo assim mais mal para quem as gerou do que para quem passou perto e feriu-se com elas. As pessoas gostam de um pouco de discussão para sair da rotina, mas quem consegue ficar o dia todo ouvindo alguém reclamar?
Você conhece alguém assim?

domingo, 13 de fevereiro de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 47

Marciano Vasques


A DOENÇA DO SENHOR FÉLIX
 
 
 
O senhor Félix acordou mais cedo do que o habitual e resolveu dar uma caminhada. Após fazer o café e se barbear com a velha navalha, foi buscar os pães. Como sempre fazia, parou na revistaria para espiar as capas dos jornais. Leu as notícias sem aflição. Um ônibus incendiado com passageiros, os preparativos da sua cidade para as comemorações de final de ano...
O céu estava varrido, fiapos de nuvens vagavam no azul vaidoso. Um esmero de esmeralda na umidade do capinzal. Ele caminhava.

Finalmente chegara o dia. Após mais de uma semana de espera iria obter o resultado do exame. Estava ansioso e preocupado. Seu caso fora encaminhado para uma junta médica, mas preparava-se para tudo, fosse qual fosse a enfermidade.

Listou todas as doenças e a sua porcentagem de chance em cada uma. Não era diabético nem sofria de hipertensão, mas por causa da idade, - mais de cinqüenta anos-, fez a lista.Glaucoma encabeçando a relação.

"E então, doutor?".

"Sente-se" solicitou o médico e fez a revelação inesperada. "O senhor tem uma doença grave".

"É grave, doutor?". "Sim", prosseguiu o profissional, discorrendo sobre a doença, que, além de grave era rara, tão rara que o senhor Felix era o primeiro caso registrado na humanidade.

"O senhor inaugurou a doença. Já pensou na importância disso?"

"Obrigado, doutor"

Após saber que era irreversível, visto que a medicina nada poderia fazer com uma doença desconhecida, saiu do hospital e caminhou desconsolado pela calçada.

Desde que começou a rodopiar num rodamoinho interno por causa das tonturas inexplicáveis, decidiu empreender uma peregrinação que incluiu o candomblé, o espiritismo e pastores evangélicos, até desembocar nos médicos.

Não tinha escapatória. Fugira a vida toda dos profissionais de saúde, mas sempre pensou que de nada adiantaria tal fuga. Um dia iria direto para o matadouro, essa a imagem que fazia sempre que observava o avanço da idade, seja numa ruga exposta, no aumento do peso, na falta de fôlego e nas dores leves e misteriosas que aos poucos iam se aconchegando em suas juntas.

O último contato que havia tido com médicos, segundo suas memórias deliciosas, acontecera na infância. Eram as brincadeiras com duas meninas, uma priminha e uma vizinha, na qual ele fora o protagonista. Por ter sido uma brincadeira tão inocente e prazerosa não considerava contraditório guardar nesse tipo de memória uma coisa da qual se esquivara a vida toda, a lembrança do médico.

Vivia fugindo dos doutores desde que era um rapaz exibicionista nas praias santistas. O nadador que percorria as bocas das docas, das donzelas e das senhoras, das mesas de bilhar, do cais e dos morros. Quem não ouvira falar de suas façanhas? É claro que o exercício aquático diário fornecia a ele uma resistência sem par. Isso virou lenda pessoal. O Santista era imbatível. Era o Peixe.

Nos quartos de pensão, no jogo do bicho, entre as prostitutas, os sorveteiros, os vendedores de coco verde, na balsa, em todos os lugares só se falava do Peixe. No dia em que subiu a serra teve a impressão de que a cidade inteira estava na estação ferroviária para se despedir dele. "Adeus Peixe" - Gritavam as pessoas. O som da locomotiva não abafava as vozes que tamborilavam em seus ouvidos. Foi a mais prazerosa viagem da sua vida e a mais comovente.

Mas agora estava ali, perplexo numa calçada chuvosa. Repentinamente desfez a caminhada e resolveu sentir-se só, como não fazia faz tempo. Uma solidão autêntica, escolhida, que pode ser burilada, aos poucos lapidada.

Que reconforto! Perdera no tempo a última vez que visitara solidão tão fecunda. Se não fosse incômodo para as pessoas que passavam, gargalharia bem alto. Ergueu os olhos para os edifícios sombrios e deu-se conta de que tudo aos poucos revestia -se de um tom cinza que já estava sendo pincelado pelas cores da súbita alegria interior que o preenchia.

Abriu o portão. Entrou e uma saudade possessiva tomou-lhe o resto da tarde. Desde quando não via as coisas que encantaram o seu crescimento?

Locomotiva subindo a serra. Um guarda-chuva aberto numa manhã chuvosa, a poeira, vistosos jardins invadidos por tonalidades arroxeadas, os brinquedos, um carrinho de madeira largado num canto de uma sala de estuque e tacos, chuchus pendurados em cercas de arame farpado, flor de maracujá, romã, parreiras, um cachorro enrolado em si num ocaso friorento, capinzais, orvalho, lençóis quarando, cabelos em coifa. Para onde fora tudo isso?

Quando começou a esquecer dos seus olhos?

Retalhos de pano, retrós de linha branca, uma xícara bordada por uma pintura antiga, os rostos dos meninos que conheceu na infância, a menina com algodão - doce parada no meio do parque olhando para ele, as moças conversando na quermesse, alguém bordando roseirais e uma borboleta bordô na borda de uma toalha.

Perseguido pelas imagens do seu passado entrou em casa, e sentiu que elas estavam em algum lugar dentro dele, protegidas contra a insensatez de um cotidiano áspero e infrutífero.

Num sobressalto descobriu quantas coisas não enxergava faz tempo. A mulher falou qualquer coisa e ele a olhou profundamente. Ela estranhou. "Por que está me olhando?"

Ele permaneceu diante dela.

"Que estranho! Você não está bem? Estou assustada. Pare de me olhar e conte o resultado do exame. O que disseram os médicos?"

Ele contou a novidade.

"Uma doença rara? Que doença é essa?"

"Vou ficar cego".

"Isso é doença rara? O que mais tem no mundo é cego!"

"Mas a minha cegueira é diferente. Eu sou o único."

"Explique, por favor"

"Eu vou ficar cego, mas vou enxergar";

"Que doidice é essa homem?"

"Verdade. Vou ficar cego vinte e três horas por dia."

Então, pela primeira vez falou calmamente com a sensação de que realmente estava sendo ouvido, como se estivesse num bar. Explicou a doença rara. Ficaria cego quase o dia inteiro, sendo que durante uma hora por dia, isso mesmo, apenas uma hora, ele enxergaria.

"Quer dizer que você vai ter uma hora por dia em que vai poder ver tudo? Durante uma hora você não será cego? Nunca ouvi falar disso".

"Nem eu. Sou o primeiro"

"E quando isso vai acontecer? Em qual hora do dia você não será cego?"

"Ao amanhecer, as sete da manhã, eles calculam."

"Vou ter que acordar cedo todos os dias?

"Acho que sim."

"Acordei cedo durante anos, agora que estou aposentada, vou ter que fazer novamente isso?

"Também poderei ver você dormindo. Deve ser uma imagem tão bonita"

"Endoidou homem? Nunca olhou pra mim nem acordada, quanto mais dormindo. Agora vem com esse papo de imagem bonita"

"Agora é diferente, preciso economizar o olhar, não, não, não é isso que eu quero dizer.  Agora preciso usar o olhar, usar e abusar"

Então algo explodiu em sua mente. Passou a vida inteira sem aprender a olhar para as coisas, ou melhor, quando era menino, olhava demais, os seus olhos percorriam a vastidão do azul, as nuvens, as cores da seda na pipa, a valsa do vento no bailado das folhagens, as pequeníssimas criaturas que se movem, rastejam, saltitam, fiapos de peixes prateados riscando o ar dos entardeceres no rio longínquo e águas deslizando entre pedregulhos alisados pela erosão, mas depois que cresceu...

Ao se tornar adulto ocupou-se a tal ponto que não reparou que a visão a cada dia nos incontáveis minutos desperdiçados ao pouco se turvava. Com ela adulterada, largou de vez o gosto pelas coisas que antes enfeitiçavam os seus olhos.

"Quando vai começar essa doença?

"Dentro de uns dois ou três dias, eles acham. Vou descansar um pouco. Pode me fazer um favor?"

"O que você quer?"

-"Ligue para Marinha". Assim ele chamava a pequena Mara. Sua única filha.

-"Pra quê?"

-"Quero vê-la na semana que vem"

"Mas você estará cego na semana que vem! Além do mais, ela mora longe e tem seus compromissos".

-"Talvez a doença já esteja mesmo funcionando pra valer e poderei vê-la às sete da manhã, lembra? Quero apreciar os contornos do seu rosto, seus traços, as suas rugas, as fibras da sua face, a sua pele. Quero sentir como é o seu olhar, quero rever o seu sorriso"

-"Acho que sua filha nem mais sorriso tem. Com tantos problemas que ela arrumou na vida acha que vai ficar sorrindo...Se você tem saudade não é melhor olhar no álbum? Nós temos muitas fotos dela..."

-"Foto, filme, nada se compara a ter diante de mim o seu rosto..."

-"Sei, as sete da manhã. Você acha que todo mundo estará disponível para você todas as manhãs?"

"Bem, vou me deitar. Preciso descansar."

No dia seguinte lá estava ele fazendo anotações num caderno. Quinze minutos para a leitura de um livro num dia, e para os gibis no outro. Iria se tornar conhecido como o cego do sebo, tal a sua disposição de vasculhar todos os sebos da cidade em busca de gibis antigos. Precisaria de alguém a seu lado. A esposa. Será que ela estaria disposta a compartilhar essas peregrinações? Claro que no escuro estaria a tatear os sebos para então no seu horário de ver ter diante de si as capas dos gibis que encantaram a sua infância.

E seguiu o dia afora com as anotações. Quinze minutos para a sua rua, para ver as pessoas da sua vizinhança, para observar os detalhes das casas, dos quintais. Quinze minutos para o rosto da companheira, quinze para os apetrechos da casa, os objetos, os quadros na parede. Não, é muito pouco tempo para cada coisa, ou talvez tempo demasiado, quiçá precisaria de apenas cinco minutos para contemplar um sabugueiro que sempre desprezou, o vermelho repleto de fuligem de um telhado sob o mormaço de um inigualável azul acanhado.

Sentiu que era necessário enquadrar melhor o tempo de acordo com a sua visão. Descobriu que o supérfluo não cabia mais no seu olhar. Começou a se desesperar. Como poderia ver tudo o que era realmente essencial? Os museus, os cinemas... Sim, poderia procurar nas locadoras os filmes que gravaram em sua memória as imagens mais gratificantes, aquelas que encharcaram os seus olhos no escuro do cinema, e aquelas que o marejaram. Mas, e o cinema? Nada poderia se comparar ao silêncio e ao envolvimento de uma sala de cinema. Como seria possível resolver isso, se os cinemas todos abrem a partir das dez da manhã? E os museus? As cores e os traços dos artistas que embelezaram a alma humana? Os museus não estariam abertos no horário da sua visão. Que desespero. O pior foi lembrar que a última vez em que estivera no cinema sentira falta daquele silêncio respeitoso que marcara profundamente a construção da sua alma em tempos passados.

Mas tem a internet, e ele até aprendeu a lidar com isso. Sabe como se conectar e sabe que a internet é uma das maravilhas contemporâneas. Todas as imagens estarão lá, as pinturas, os grandes artistas, os maiores espíritos da humanidade na tela do computador. Sim, o seu problema estaria solucionado. Internet e pronto. Não precisaria sair de casa. Até as paisagens mais bonitas do mundo estariam diante dele num simples clicar.

Não, não teria graça ficar durante horas sentado em uma cadeira. Horas? Não é mais possível falar de horas. O ideal mesmo seria ir aos museus, aos cinemas, caminhar nas praças, na areia, no capinzal. Seus olhos estariam acometidos de uma fome insaciável de vida ao vivo. De cores que pudessem ser tocadas pelos olhos.

Para quem deveria escrever? Para o prefeito? O governador? Para que autoridade deveria escrever solicitando, reivindicando, implorando para que os cinemas, os museus, e também o zoológico, pudessem funcionar em horário diferenciado.

"Loucura!". Pensou. Iriam recusar. Diriam que só pelo fato de ter um olho que enxerga apenas uma hora por dia estaria pensando que era um rei? Não, não daria certo, seria inútil escrever para quem quer que fosse. Teria que se virar sozinho e ver sem a ajuda de ninguém. O drama estava estabelecido. E ele estava disposto a ser o mais fiel protagonista.

Abrir os olhos, não deixar escapar nada do espetáculo do mundo que se apresentaria para ele aí no seu cantinho, na sua impossibilidade de viajar, ali mesmo, na sua casa, no seu quarteirão, no seu vilarejo, na sua cidade. Tudo estaria à disposição dos seus olhos nos locais onde ele pudesse se mover. Tudo seria visto, fartamente visto, iluminado pela luz que vê, sorvido com a mirada contemplativa dos seus olhos. O seu olhar se estenderia sobre tudo, o alcance da sua visão estaria na plenitude das coisas verdadeiramente necessitadas de contemplação.

Cada cena do cotidiano, cada botão em seus detalhes, cada tecido de cada roupa com suas cores. Ele não poderia mais perder tempo olhando sem ver. A cada dia teria uma hora para lapidar o olhar, aperfeiçoar, para o deixar cada vez mais eficaz, mas significativo.

Repentinamente recordou-se de que com ele acontecia algo que já fazia parte da sua forma de ser. Ocorreu se lembrar de que quando conversava com alguém quase nunca olhava para o rosto da pessoa com quem falava, quanto mais os olhos. Qual a cor dos olhos de todos aqueles com quem convivia no dia a dia? Suas sobrinhas, suas duas netinhas, seus filhos, seus amigos, sua comadre, suas irmãs. Quem teria os olhos verdes? Ou castanhos? Ficou impressionado com a sua descoberta e não soube precisar quando isso começou a fazer sentido, quando foi incorporado à sua vida, e agora estaria na escuridão, quase o dia inteiro.

Como poderia recuperar essas coisas? Teria apenas uma hora por dia, e as pessoas do seu convívio estariam quase todas dormindo e não poderiam viver em função dele, cada qual alterando a sua rotina por causa do seu problema. Mas se tinha algo de bom nele é que não aprendera a desistir e fincou pé nesse empreendimento. Iria catalogar mentalmente as cores de todos os seus olhos. Começaria pelas netinhas. Depois iria para os adultos.

Não havia mais tempo para lamentações. O ideal seria que a sua doença, ou melhor, a sua visão, ocorresse na metade do dia ou ao entardecer, quando todos já estariam acordados. Mas como seria dessa maneira, então iria à luta. Pra que chorar sobre o leite derramado? Melhor seria ordenhar um novo leite. Era o que ele estava fazendo. Traçando planos, estratégias, ações. Teria que dar um jeito de ver todos e tudo naquela hora da manhã. Estava ávido de ver.

Quem acompanhou tudo de perto podia sentir nele uma expectativa, uma ansiedade nunca antes sentida. Ele realmente causava a impressão de que não agüentava mais esperar pela coisa, na verdade demonstrava sentir uma vontade incontrolável de que começasse logo. Estava vivendo uma tortura sem trégua. Parece exagero, mas ele queria explodir de curiosidade. Era como se fosse iniciar uma grande aventura, a maior da sua vida.

Já estava incomodado com tanta visão, talvez pelo fato de ter tido a consciência de que a visão o dia inteiro era um convite ao desperdício. Estava claro para ele que a preguiça acompanha o ser humano. Que as pessoas desperdiçam quando têm demais. Por isso tanta correria diária, e tanto concreto e uma lacuna cada vez maior de jardins, de borboletas e cores. O mundo estava perdendo as cores. Até o azul celeste já fazia tempo estava nublado, acinzentado, ou melhor, nem era mais azul, era pura poluição. E ninguém se dava conta nem parecia sentir falta do espetáculo estelar.

De vez em quando as pessoas iam ao planetário e tudo estava resolvido, ou então se empanturravam com as cores da tela da televisão. Ele ficou abismado e foi difícil sair do abismo quando descobriu que as pessoas nem iam mais para fora ao anoitecer. Todos no sofá numa espécie de hipnose coletiva a tal ponto que o pai nem olhava pro rosto da filha quando ela falava. Isso é uma verdade que muitos podiam testemunhar. Pessoas quase não mais conversavam, quanto mais se falar.

Tudo isso estava angustiando o nosso paciente que não via o momento de começar a exercer a sua doença. Como seria proveitoso pra ele! Como seria gratificante ter uma hora apenas por dia de luz, de cores, e poder se gratificar, se lambuzar e se encantar com as cores, as formas e a beleza do mundo. Tanto tempo perdido, desperdiçado, jogado fora, mas agora seria diferente. Com uma hora só por dia ele saberia ver de verdade, cada coisa, cada objeto, cada cor, cada forma. Estava aprendendo na sua ansiedade que quando se tem pouco é mais fácil de se administrar.

Poderia olhar com delicadeza, com olhar de menino, aquele olhar que havia ficado lá atrás, poderia ver com o olhar de poeta. Logo ele que nunca levou os poetas a sério! Quem diria, como a vida é curiosa! Agora ele teria o seu olhar lapidado, tudo iria se revelar em cada detalhe. O que é realmente essencial seria revelado no seu novo estilo de ver.

Ele jamais seria um cego, e aos poucos começou a perceber que jamais voltaria a ser um, pois é o que ele havia sido a vida inteira. Esbanjando visão a tal ponto que a desperdiçou quase o tempo todo após ser menino.

Estava plenamente convencido de que aquele que tem demais pouco valoriza, quem tem em abundância perde a noção da importância do que tem. Os tesouros são diluídos no cotidiano, as verdadeiras riquezas são aniquiladas diariamente. Uma aurora, um ocaso, um gafanhoto em sua coreografia verde e exuberante, as cores de todas as cores, até mesmo as cores da poesia, que estão ocultas na escrita.

Ocultas, mas à disposição daquele que conhece a visão. Sim, é preciso conhecer o que se possui para que se possa valorizar e amar, pois senão de que adianta ter? Alguém que não conhece a própria visão jamais estará apto para a generosidade do mundo, que se esparrama em cores e formas desde um marisco com seu rastro até a mais distante estrela.

Olhar novamente como um menino era o que estava disposto a fazer, erguer a sua mirada para as coisas efetivamente simples e profundas, as que nos tocam com maestria. Apreciar o que solicita atenção e desprendimento. Assim preparava o seu olhar para ser poeta e contava em cada novo amanhecer com a chegada da sua doença.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Mensagem

Você é preconceituoso?


Há pouco tempo, mais um ataque homofóbico ocorreu na região da Paulista, SP. Em um país onde já sofremos com tantos bandidos, agora temos que nos preocupar com mais uma forma de violência. Todos se horrorizam com tamanha selvageria gratuita. Mas, contraditoriamente, cidadãos honestos e de boa índole passam o preconceito de geração a geração sem perceber.

As piadas com temática repugnante sobre loiras, pessoas feias, homossexuais, mulheres, estrangeiros, negros, religiosos, pobres e deficientes mentais ou físicos, permeiam o dia a dia das pessoas com tamanha naturalidade que o conteúdo fica disfarçado de inocência. O humor é o termômetro da cultura de um povo e é passado de geração a geração. Loiras e negros maravilhosos estão em todos os campos para mostrar que a capacidade intelectual do ser humano não varia com a cor da pele como faz um camaleão esperto. Homossexuais – gays ou lésbicas – honestos e trabalhadores estão em todos os segmentos. Conheço homens brancos, negros, orientais, de incontáveis religiões e naturalidades que são corruptos, desonestos, mentirosos, assim como o oposto. A preferência sexual de uma pessoal não significa promiscuidade. Padres e heterossexuais pedófilos, sim, merecem nossa preocupação.

E nossos irmãos portugueses que são constante alvo de piadas no Brasil: quando teremos alcançado o desenvolvimento desse país europeu? Convivemos com pessoas que não tiveram oportunidade na vida por terem nascido em um país em que o cidadão é órfão de Estado e rimos delas. Sei que o bom humor é a melhor qualidade que uma pessoa pode ter. Otimista, ela encara os problemas sem desespero e encontra soluções facilmente. Rir é um santo remédio. Todo mundo precisa de momentos de lazer e relaxamento, a mente humana não consegue criar se não houver uma válvula de escape.

Mas, observemos as alternativas: natureza, passeios ao ar livre, boa literatura, cinema, teatro, momentos de qualidade com crianças, amigos e familiares. Oralmente ou por emails, piadas de teor desumano não acrescentam nada a ninguém. Se for para rir, que seja de forma saudável, não à custa da inferiorização de outra pessoa. As crianças aprendem com o exemplo. Respeito é o melhor exemplo que se pode dar. Uma criança que escuta dos adultos uma piada sobre a falta de inteligência de uma pessoa loira, negra ou de Portugal, chegará à escola e tratará o colega com essas características de forma desrespeitosa, dando origem ao bullying e suas graves consequências. Vale a pena nos preocuparmos com o que falamos e fazemos perto dos pequenos. Talvez estejamos semeando preconceitos sem perceber, dentro da nossa própria casa, para nossos filhos, sobrinhos e netos.

Em várias culturas não se contam piadas preconceituosas. Nas que o fazem, há piadas sobre o Brasil também. Desagradável, não é? A imagem dos brasileiros no exterior não é a do povo mais inteligente e trabalhador do mundo. Quem mora aqui sabe que temos pessoas que trabalham do amanhecer ao anoitecer, contribuem para o desenvolvimento do mundo, pessoas brilhantes e dedicadas. O mais triste são os brasileiros que fazem piadas sobre compatriotas de outras regiões. Como se a inteligência fosse doença que só se pega em certos estados. Conheço brasileiros maravilhosos em todas as regiões do nosso país. Assim como há brasileiros, norte-americanos, africanos, europeus, etc., preguiçosos e desonestos, trabalhadores e honestos, em todos os cantos também. Sei que estou sendo repetitiva.

O certo é que toda afirmação generalizada é preconceituosa e irresponsável. Cada ser humano é único e fruto de suas escolhas e vivências. Resultado da sua capacidade de driblar a influência do meio. Portugal é um desses países em que o respeito ao próximo impera, onde rir do outro não faz parte do dia a dia porque estão muito ocupados trabalhando e construindo um país melhor. Não há violência nem bandidos pelas ruas. E nós achamos que eles não são espertos.



Por Simone Pedersen

http://www.simonealvespedersen.blogspot.com

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Sétima edição de DING, A GOTINHA



Queridos amigos!
Estou comemorando a sétima edição do meu livro Ding, a Gotinha, publicado pelas Paulinas e ilustrado pelo Marchi.
A história, contada em versos, narra a trajetória de Ding, a gotinha independente, que escapou de uma nuvem e caiu na terra. Aqui, ela caiu no nariz de uma garotinha, a seguir, na careca de um homem que ia passando, e assim, sucessivamente , até encontrar a abelhinha Caramel, com a qual faz amizade. Ding descobre como é difícil agradar, mas, não desiste do seu objetivo que é ajudar as pessoas.


Um beijo a todos,
Regina Sormani

domingo, 6 de fevereiro de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 46

 SEM ACORDO, POR FAVOR!



Alguém me perguntou o que eu achava do acordo ortográfico, essa anomalia intelectual que paira sobre a nossa querida Língua Portuguesa. Como sou naturalmente desligado, disse que não "acho" nada, faz tempo que deixei de "achar" o que quer que fosse sobre qualquer coisa.

Mas considero sim algumas relevâncias argumentativas, só para azucrinar, e evito também escrever muito, pois depois não terei tempo para a ler a enxurrada de comentários.
O "acordo" que tirou o trema. Ora, pus-me aqui: eu sentia um orgulho imenso do trema. "O Trema é coisa nossa!" pensei.
Os intelectuais, todos eles, entre os quais um ilustre ex-presidente do Brasil, o senhor José Sarney, e tantos que tanta contribuição já prestaram ao país, impuseram esse acordo. Mas não há necessidade nenhuma de unificação da Língua Portuguesa! Que coisa mais descabida, mais insensata.  Quem sabe os Americanos também irão querer unificar o idioma deles com o Inglês da Inglaterra.
Portugal que eu amo. Tomei conhecimento por um risco de brisa que você não está nem aí para esse tal "Acordo"... Acordo deveria consultar as duas partes, não é? De um lado os intelectuais acadêmicos que necessitam passar para a história, para a memória do Brasil, e do outro lado, o povo, a população, aquela, sabem?: Aquela dos mocambos, dos vilarejos, da vida que explode em mil cores nos varais, nos bailados, nas areias e nos verdejantes, nos casebres, nas trilhas, nos bares e nos altares.
"Consultar a população para que? Nós sabemos o que é bom para o país". Ora! Esse acordo não unifica nada. Nem a Língua, nem a ortografia. É uma mentira oficial. Assim como em muitas "lares" a mentira oficial sobrevive, também por aqui, em nossa nação, seus intelectuais decidiram pelo acordo. Quero de volta o meu trema!
Já tem gente sugerindo o que seria mais produtivo: a publicação de dicionários com as variantes (Houaiss, Aurélio)... Seria muito mais produtivo e interessante...
Tudo bem, dirão, você não vale, você não tem espírito de carneiro...
Em nosso país tem algo curioso, e alguns escritores perceberam isso, como Lima Barreto. A vida, por aqui, não tem jeito. Ela escorre ladeiras, ressurge na azulada espuma das águas dos tanques e das tinas, está no andar cadenciado da mulher, e a vida é como a Língua: tem todos os aromas da memória da felicidade. A rabanada, a moqueca, o quibebe, as comidas e as flores e a maresia das lindas cidades.
A vida se entrelaça e escapa pelas ruas nada geométricas, pelos paralelepípedos, pelo orvalho, e pelo ocaso enluarado... A vida é mais do que sinônimo da Língua. É a sua própria alma, por isso nunca deu certo por essas terras quando ela é modificada de forma autoritária e artificial. Pois ela, a Língua, não é artificial. É a Língua da terra de Jorge Amado, de Caetano Veloso, da mulher rendeira, e do moleque de pandorga pegando rabeira em caminhão ou valsando na ligeireza da caça ao siriri por essas andanças luminosas das vilas mais distantes...
A Língua no diapasão do amolador, nos gritos das tardes empoeiradas: "Olha a pamonha! Pamonha quentinha!" ...
Nem moçambicanos, nem angolanos, nem eu, nem você, ninguém lucrou nada com esse acordo dos intelectuais. Prefiro ficar na minha, bem caladinho, sem tremer, com o meu trema.

MARCIANO VASQUES