sábado, 10 de abril de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 3




DOMINGO 
PEDE 
PALAVRA


 
 
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A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS  


    

Penso que uma reforma educacional deva começar pela educação dos sentidos. É possível que os que lidam diretamente com a educação: ministros, secretários, pedagogos e educadores, não tenham ainda se dado conta da urgente reforma dos sentidos num projeto pedagógico. Nenhum projeto de grande envergadura dará plenamente certo e obterá profundo êxito se não se investir com seriedade nos sentidos.
         O que significa dizer reforma ou educação dos sentidos? Reforma, palavra extraída e retirada do acervo filosófico, semanticamente quer dizer aperfeiçoamento, reconstrução. Educação, e não reeducação, significa investimento, modelação, lapidação. São sinônimos.
         Não reeducação pelo fato de que nunca houve um projeto nesse sentido. Apenas isoladas iniciativas. Entre as quais a implantação de alguma disciplina sem conexão com uma idéia central.
         Mais do que nunca, em nossos dias é necessário se pensar essa questão, porque estão os sentidos prejudicados, afetados, mutilados.
         Examinaremos rapidamente cada um dos cinco. Não que sejam os únicos, mas são os que aqui nos interessa.
         Começaremos pela audição. É sabido que a música está muito alta. Ela não precisa estar tão alta, basta ser boa, penetrar na alma, voltar à sua essência, viver de acordo com a sua natureza, cumprir o seu propósito, ou, se quiserem, o seu destino.
Uma das reclamações mais ouvidas dos professores é a questão da disciplina. As crianças estão terríveis, agitadas. Não há disciplina e justamente não há porque não há disciplina nos sentidos, não há rigor, não há preparação para a chegada do belo, não há um curso de  recepcionista da beleza. É preciso disciplinar os sentidos!

"Rosa e Azul" - Auguste Renoir


As crianças são as mais atingidas pela guerra do barulho em nosso tempo.
 Barulho excessivo. Máquinas, trânsito, ferramentas, gritos, portas batendo, e a música. Sim, a música nas rádios, na televisão. É preciso investir na música suave. Criança deveria ouvir música clássica nas escolas. Junto com a cantiga. A cantiga, pela sua resistência e adoração das crianças. Um dos aspectos da semelhança entre a cantiga e a música clássica é a permanência de ambas. Elas transitam livremente no tempo, atravessando momentos, ou seja, modismos. Uma cantiga é para sempre, assim como uma música clássica. Ambas são teimosas. Teimosia cujo caráter é universal.
A educação auditiva da criança deveria começar com a música. Depois a voz. É necessário aprender a falar baixo. Depois aprender a ouvir. Esquecer do mundo televisivo, do barulho musical, das vozes altas, dos gritos caseiros, e aprender a ouvir. Sentir a delícia do ouvir. Sentir o prazer inigualável da audição. A criança devia fazer um curso de audição da natureza. Aprender a ouvir as águas no rio, o vôo dos insetos, os pássaros, as delicadezas dos gatos.Talvez voltar a ouvir uterinamente!
Os adultos deveriam reconhecer os benefícios do silêncio, como ponto de partida para ouvir a voz dos ventos, a música do bailado dos eucaliptos. E então, com a alma eucalipitada, ouvir a apaixonante voz humana. Percebê-la como instrumento oferecido pela natureza para embelezar a audição. Voz nascida para o diálogo, para depositar nos ouvidos a paz.
         A música está perdendo o seu sentido original de elevação do espírito. Ouve-se música em todos os lugares e a qualquer momento. No elevador, no trânsito, no escritório, no banheiro, no supermercado, no dominó, na conversa. Virou mercadoria desprovida de sentido. Se tivesse se transformado numa com sentido! Como, por exemplo, um alimento. Mas porque foi transformada em música pela música, modelada para ser descartável, ser da moda, perdeu o sentido.
Talvez tenha sido a moda, a parada musical, a pior invenção para ela, que pouco a pouco foi perdendo o seu caráter de eternidade. As pessoas estão saturadas de música, porque a indústria não pode parar de produzir e hoje se produz música como se produz qualquer outra coisa. Não há necessidade de tanta produção. É necessário que as pessoas voltem a prestar atenção na música, voltem a senti-la. Ela  solicita atenção! Não pode continuar sendo este fast food espiritual! É necessária a educação do ouvir, o aprimoramento da audição. O som precisa ser aprimorado. A música ganhou em tecnologia, em técnica, mas está perdendo em sentido. E o seu sentido precisa ser reencontrado na educação dos sentidos.
A visão acompanha a audição em perdas e danos. O olhar precisa ser educado para a libélula, para as inflorescências, para o rio, para asas e verdes. Precisa ser enluarado, ensolarado, ser educado para a o chamamento da poesia. Estar pleno de chuvas, impregnado do sorriso das manhãs.

Atualmente o olhar nos causa a triste impressão de ausência. Quantas vezes ele, por puro desconhecimento do essencialmente belo, se desvia. Perdeu a sua pedagogia, que é a de captar o belo, a visão esplendorosa da natureza e fixá-la no viver cotidiano. Um mestre da pintura, a elegância de um sorriso, as formas graciosas dos pássaros. Já não é mais o olhar do espanto, do pasmo diante da descoberta do mundo. A velocidade da comunicação e o excesso de imagens são prejudiciais a ele.
Precisa de uma pausa, de repouso, de serenidade. O lago necessita da uma morada, o barco também.O olhar precisa do barco, do lago. Ele é a morada. Tem que recapturar o seu próprio dom de conectar a poesia diária, atender ao chamamento, estar encharcado das cores da vida. A criança, as pequenas formas que rastejam e voam, o azul, o ar. Tudo é sua  propriedade amorosa.

É perceptível a degradação do olhar. As pessoas estão aparentemente olhando. Um rosto humano quase nem é mais visível. Cosmo significa organização. Cosmético, organização do rosto. A antiga tentativa de organizar o rosto, deixá-lo mais bonito do que já é naturalmente, sempre teve como motivo principal oferendas ao olhar.
Olfato. Como isso já está se distanciando! Como diminui o prazer dessa convivência! Odores da vida sempre foram um grande auxiliar no desenvolvimento e aperfeiçoamento do olfato. Mas, quase nem há jardins!
O olfato precisa reencontrar os minutos fundamentais para o seu exercício saudável. O retorno do perfume das flores, as fragrâncias da vida. O olfato é como a memória, quanto mais se exercita, quanto mais se usa, mais se aprimora.
A convivência com o inodoro, com os cheiros industriais e os cheiros da poluição das grandes metrópoles, são fatores que perturbam o olfato. A degradação da alimentação, a idéia de globalização, que não privilegia os odores regionais da alimentação,- os odores culturais, são elementos que pouco a pouco vão reduzindo a capacidade desse sentido. Tudo, desde o azeite até as flores, parece cada vez mais inodoro.Os insetos, pássaros e mariposas parecem não afetados. Um consolo para as flores.
O paladar, a gustação. Eis um sentido severamente afetado. O grande culpado é a chamada vida moderna, a linha de produção, a pressa. Não há mais tempo para nada. Parece uma insensatez alguém exigir tempo para se alimentar.
É necessário que adultos reaprendam a mastigar. O almoço, o jantar, a confraternização, o encontro, - pois é assim que deveria ser o momento da alimentação -, precisa ser urgentemente retomado. Quem sabe um decreto mundial determinando que todos façam do momento de refeição um momento prazeroso, alegre, feliz, no qual pessoas possam se encontrar em sorrisos, gargalhadas, palavras e conversas.

De certa forma uma boa parte da população está engolindo em vez de mastigar, saborear. Comer um simples pedaço de pão é uma arte. É evidente que a educação desse sentido só  é possível entre os que têm o que comer. Pois seria hipocrisia, insensatez mental se falar em educação alimentar, em refinamento do paladar, para a multidão de famintos que vivem no mundo. É, pois, o sentido mais prejudicado no mundo contemporâneo. De um lado, seres humanos vivendo a absurda fome, de outro, pessoas comendo apressadamente, sem motivação, apenas saciando os instintos naturais. A qualidade desabando, o fast food monopolizando, o sabor se evaporando, o prazer indo embora. O que deveria exigir um ritual de alegria, de encontros, parece se dissolver numa obrigatoriedade, numa execução típica de animal irracional. Comer, comer, comer, esquecer que se alimentar é oportunidade de elevação do prazer humano, de encontro com a amizade, com a conversa, com a harmonia, o gosto.
Costumo afirmar que a educação deveria ser doce porque é o sabor preferido das crianças, porém é visível a falta de preocupação caseira com a alimentação saudável, com a educação do sentido paladar: muitos doces e salgadinhos, balas e chicletes, poucas frutas e verdes.
Finalmente o sentido fortemente atingido pelo modo de vida atual: o tato.
É o sentido do toque, do aconchego, das impressões. Cada vez mais prejudicado. É o sentido da delicadeza, da suavidade. Mas o que ocorre é o contrário. Cada vez mais o tato vai caindo em desuso, o que significa, vai tendo sua função culturalmente alterada.Vejamos:
Indelicadezas reinam no dia a dia. As pessoas estão batendo a porta do carro, a porta da geladeira, as janelas e as portas. Não precisaria isso. Mas está virando um gesto cultural! Bater. A imprecisão do bater é cúmplice da pressa, que é a alma da época. O curioso é que a avanço da ciência, da tecnologia, cada vez mais solicita a delicadeza, o veludo, a suavidade. As teclas de um computador, qualquer eletrodoméstico, tudo pede um gesto suave, tudo caminha para o toque. A ciência evolui, mas o homem parece que não. Continua a usar a força onde não é necessária.
Ao mesmo tempo, contraditoriamente o ser humano que bate as portas, vai tendo dificuldade cada vez mais sentida, de demonstrar o seu afeto. Já não se abraça como antigamente! Aliás, quase não se abraça. Apenas finge-se. É o abraço da velocidade, é o abraço superficial. Raramente se abraça o amigo, a esposa, com força. A força foi canalizada para os objetos. Até um aperto de mão cada vez é mais rasteiro, as mãos se desconhecem, parece que o toque se afugenta do corpo humano. O corpo humano não é mais uma preciosidade. Está cada vez mais distante do afeto, do toque, do tato, do abraço. O abraço é um patrimônio humano que está sendo abandonado. E assim vai o tato, cada vez mais deturpado, cada vez mais deformado.
Encerro afirmando que a escola, a educação, os que se ocupam dos afazeres pedagógicos, devem prestar atenção no fato de que um projeto pedagógico que viabilize os sentidos, que privilegie a educação dos sentidos, é o primeiro passo para uma nova maneira de olhar a vida.


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MARCIANO VASQUES 



Marciano Vasques é escritor
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