domingo, 23 de maio de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 9

DOMINGO PEDE PALAVRA



Marciano Vasques

  

A RUA LONGA E O CRONISTA
 




No dia 12 de dezembro de 2003, em que me enviou os votos de um Feliz Natal num bilhete escrito no canto superior esquerdo de uma página do “Correio do Sul”, popular periódico de Varginha, Sul de Minas, o cronista Zanoto, o mais querido correspondente do Brasil, - como eu disse certa vez para Ilma Fontes, ao enviar uma formiguinha-, revelou-me que estava se recuperando de uma cirurgia no coração. Dizia que breve estaria em forma.

No mesmo dia, em sua coluna “Diversos Caminhos” no tópico primeiro falava de uma rua longa, “que é a rua do mundo/passa em torno do mundo/cheia de todas as pessoas do mundo...” como havia dito Laurence Ferlinghetti.

Até as vozes das pessoas que já existiram estão na rua longa. Nós, você, eu, P.H.Xavier, artistas plásticos, vendedores de amendoim, de sanduíches, de bilhetes de loteria, estamos passando na rua longa do mundo”, completava o Zanoto.
Eis uma entre tantas mensagens que não esqueço do amigo dos poetas que mora nas páginas do jornal mineiro.

Ontem enquanto ouvia Ramblin’Rose lembrei do Zanoto, lembrei da fuga da chuva, quando um homem e um menino corriam para a rodoviária na noite de um dia 25 de janeiro após terem estado com o cronista em seu apartamento.

Lembro-me da nossa conversa e jamais esqueci do “passeio maluco”, como bem definiu o poeta de Varginha. Afinal ter saído de São Paulo e ido à cidade do Correio do Sul apenas para ver o ilustre senhor que abriga no peito um coração acostumado com diversos caminhos e voltar no mesmo dia pode mesmo ser considerado uma maluquice. Qualquer outro ficaria alguns dias na cidade, mas parece-me que as visitas rápidas, as viagens curtas são as essenciais.

Eu, que vivo em “estado de partida”, penso que a vida vale por essas maluquices, esses encontros curtos, e sinto uma vontade de dançar ao teclado como gostaria que acontecesse a alma de Nat King Cole, com sua voz aveludada, com seu Ramblin’Rose. Cantos ameigados sempre me conduzem para manhãs distantes.

Mas nunca é demais lembrar que toda luta é grandiosa e o prazer da minha alma, ou seja, o aquecimento que o meu coração recebe com a voz fonográfica está gravado numa luta medonha, é assim com todos, com cada um de nós, com aqueles que decidiram por natureza a embelezar o mundo, cada qual com sua contribuição, toda ela sempre gigantesca, mesmo que pareça apenas uma simples semente, um fiapo de alpiste, uma gotinha de luz, um orvalho lavando verdes distraídos.

Zanoto não brotou espontaneamente, nada brota espontaneamente neste universo de lutas medonhas que se entrelaçam com seus chicotes de luzes e travam batalhas inacreditáveis apenas para conseguir um espaço para jorrar as belezas que querem ser expandidas.
Nat King Cole sofria ao ver que seus músicos eram proibidos de comer nos restaurantes dos hotéis onde ele se hospedava com seus colaboradores. Sofreu também quando comprou uma casa nas proximidades de Los Angeles. Os moradores promoveram uma campanha para evitar que ele se instalasse com sua família no bairro. Choravam todas as noites sem compreender porque os negros não podiam morar num bairro de elite. Ele, um cantor cuja voz já ecoava nos corações dos marujos, dos moradores e de todos os que ouviam rádio, vivia o drama de não poder morar onde quisesse. Quando finalmente conseguiu se mudar para a casa que adquirira com o seu próprio suor teve que enfrentar a intolerância racial e jamais se esqueceu das lágrimas banhando o rosto da filhinha adotiva Carol ao ler as coisas horríveis que os vizinhos escreviam com fogo na grama.

Porém isso não iria atrapalhá-lo, pois o seu destino era afinal se tornar um dos grandes cantores românticos do mundo.

Zanoto do coração lindo, a vida é curiosa. E cá estou a escrever essas “mal traçadas linhas” a lembrar de você e da sua trincheira, da sua batalha em favor do poeta desconhecido desse Brasil belo e maltratado pelos seus governantes nos séculos e séculos, e também a velar pela poesia universal.
A rua longa do mundo, bem disse você naquele dezembro em sua página, tem prolongamento por todas as cidades. Ela cruza avenidas, ruelas, ladeiras, boulevards...E assim vai marcando o espaço nosso neste dolorido e doloroso mundo.

Bem queria, bem-te-li, bem queria vagar na felicidade de Lupiscínio Rodrigues, quem sabe ouvindo ainda o Xote da Felicidade, tal como ouvi certa manhã no Parque da Água Branca, interpretada pela “Orquestra Sanfônica de São Paulo”, ou então na gravação de Paulo Diniz que não me esqueço.
“Nada será como antes”. Mas há coisas que não se vão, pois certamente ficaram à beira do caminho na rua longa. 

 
 

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