NECESSIDADE E UTOPIA
Da oral narrativa da Alemanha foi recolhido um caso de utopia. Duas crianças são por seus pais na floresta abandonadas. Pais que passam por privações terríveis. Para que os pequenos de fome não morram, eles os largam na mata.
Os irmãos encontram uma casa feita de doces. Tudo nela é feito de guloseimas. O telhado, as paredes. Pirulitos, sorvetes e doces de todos os tipos.
Em circunstâncias de desespero aparentemente instransponíveis o humano inventa utopias. Quando se torna flagelado pela fome e pela miséria absoluta e diante de situações calamitosas e sem saídas, torna-se utópico. Cria em sua mente coletiva as utopias.
Há na história humana os incontáveis exemplos. Lugares paradisíacos banhados por rios de águas cristalinas, terra onde o coentro eliminaria a fome, salsichas caindo das árvores, rios caudalosos e casas feitas de doces.
Nas histórias e nas lendas deparamos-nos com diversas utopias que podem não ser vistas como tais. Casar com um príncipe e viver como uma princesa num reino encantado é uma forma de utopia da alma humana, presente, sobretudo nos contos de fadas.
O bebê quando nasce não sabe nada de utopias, que não é uma idéia inata, um arquétipo da mente humana, como não são outras idéias, quaisquer que sejam, todas edificadas em camadas como palimpsestos na alma. São construções culturais. A maioria surgida da necessidade primordial.
O bebê procura instintivamente o seio gigante da mãe. A criatura que se apresenta diante dele, puro ser sensorial, é na realidade um gigantesco seio à sua disposição. Isso é necessidade, é por ela que ele sobrevive, porque procura o seio, essa é a sua motivação para a vida. Se de utopia nos seus primeiros dias vivesse morreria.
As satisfações das necessidades vitais representam a condição imediata de sobrevivência. Você sobrevive porque é feito de necessidades. O dia que não mais as tiver com certeza morrerá, ou melhor, já terá morrido. É a mãe da vida, no inicio representada pela figura da fêmea.
Fêmea feita de leite e de afagos que implantam a necessidade de afeto e de carinho. Fêmea a levar na boca o alimento para o filhote. A necessidade se apresenta como fêmea.
Quando as necessidades não são atendidas eis que surgem as utopias, não como substitutos, mas como atenuantes, paliativos, galhos onde o humano possa se agarrar para sobreviver na árvore da vida, que de frondosa passa a flagelo, a desgraça, a abandono, a esquecimento.
Um caso de utopia recentemente contemporânea: o humano das utopias fortalecendo-se diante da figura carismática de um governo.
Governos populistas lidam bem com isso. Apresentam projetos paternalistas e assistencialistas que passam a atender à necessidade imperiosa de utopias coletivas quando seres miseráveis e de condições ultrajantes não têm condições concretas de lutarem sequer para o atendimento de suas necessidades.
Na impossibilidade de alcance da satisfação das necessidades a mente humana, — prodígio maravilhoso do mundo—, elabora utopias.
Mas elas podem tornar-se perigosas, pois poderiam engendrar fanatismos, caravanas por desertos, seitas, buscas insensatas; e templos poderiam ser erguidos sobre os destroços da natureza humana, que passaria a ser controlada pela vontade coletiva expressa e catalisada por representantes da dor represada.
Todas as utopias da história humana pela literatura e pela filosofia registradas são importantes enquanto documentos do imenso patrimônio cultural do homem. Seja a Republica platônica, a utopia de Thomas More, as cidades imaginadas por um filósofo nos anos de prisão, a terra prometida, os reinos além do mundo, o paraíso.
Todavia a necessidade edificou mundos. Bibliotecas foram erguidas por causa da necessidade de se preservar a riqueza cultural da humanidade. Livros foram censurados e queimados por causa da necessidade de tiranos de se perpetuarem no poder.
Sabe por si mesmo o bebê que todo o progresso da sua existência está na busca incessante da satisfação das suas necessidades básicas. O seu intelecto é uma láctea, manifesta-se gloriosamente em sua primeira ação cultural: o ato de sugar.
Até ir ao cinema para se distrair faz parte de uma necessidade. A da alegria passageira que muitas vezes substitui a felicidade autêntica, que só pode ser alcançada no pleno desenvolvimento do potencial do Ser.
Até espalhar a dor e o sofrimento pode ser uma resposta ao atendimento de uma necessidade que não pôde ser satisfeita no curso normal da vida: o afeto, a proteção, a segurança e o amor na infância.
Eis duas realidades da natureza humana. A necessidade a mover o mundo. A utopia como protagonista das forças paralisantes.
MARCIANO VASQUES
Marciano Vasques é escritor, fundador do blog
CASA AZUL DA LITERATURA
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