sábado, 3 de abril de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 2


DOMINGO
PEDE 
PALAVRA
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A ESCADARIA E O ESCRITOR

 

O escritor não é um filósofo e nem deve se preocupar em sê-lo. Há filósofos que são escritores. Na escadaria dos espíritos necessários, ele está um degrau apenas de distância do filósofo. No mesmo degrau do poeta, um acordo firmado entre os dois, um sinal de cortesia, com certeza do poeta, um gesto solidário para com ele. Há poetas também escritores. Talvez por isso o poeta compreenda-lhe a alma, embora haja distância entre os dois, insignificante diante da distância dos que nada fizeram para estar num degrau da escadaria. Em linguagem leiga, popular, com esforço de semântica, escritor e poeta seriam uma coisa só.
O poeta, ser sedento por natureza. Sobre um retrato fiel do poeta, procurar por Eugênio de Andrade, ou então Henri Miller. Ser sedento, prioritário numa sociedade. Que seria da alma sem ele?

Poeta português Eugênio de Andrade
Reprodução


Escritor Henri Miller
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Afirmar isso da prioridade do poeta pode ser motivo de chacota, por causa da forma como a sociedade humana se enredou. Mas quem se despi do uniforme contemporâneo e aceita a entrada dos raios no pensar, compreende perfeitamente a idéia da necessidade urgente do poeta, tal como pode ver despertada a curiosidade para com a escadaria e reparar que nela não há lugar para imobilidade e que cada um pode mudar de degraus, indo do degrau do santo para o do filósofo e assim por diante e que tudo se refere à natureza e ao esforço interior de cada um, pois ninguém é transformado num escritor, por exemplo, por ter um diploma de letras, por ser aceito numa academia ou por vender milhares de exemplares.

Santo
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Filósofo
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O escritor precisa do contentamento para seguir em frente, contentamento que significa a descoberta da alegria, causada pela compreensão de si como alguém com inimitável responsabilidade para com a sociedade humana. Alguém que torna o seu degrau resplandecente, lugar de paz, com paisagem e atmosfera belas e atraentes.
Não pode vacilar, pois é o que mais se aproxima do filósofo - ser em extinção, diria quem já teria dito que a filosofia não é necessária, ou substituiu faz tempo o médico de almas por curandeirismo barato.
         Não apenas pela aproximação com o filósofo, mas pela sua própria natureza, muitas vezes por ele mesmo desconhecida: natureza de fazedor de homens, de arquiteto do tempo, de ensaiador de mudanças, de farol, de amigo do homem. Essencialmente do homem, e por extensão, do mundo.
Não é um pensador no sentido filosófico do termo, mas garimpeiro das necessidades do pensamento e observador desconcertante da imobilidade. Grande testemunha do tempo. Não se trata de endeusamento do escritor, mas tentativa de retratá-lo, de compreender a sua permanência tão próxima do filósofo, na escadaria que pode ser chamada de escadaria do pensamento, caso contrário poderia nela estar o médico, o juiz, que pertencem a uma outra categoria.
Ele arranha, perfura, invade, penetra nos espaços deixados pela insensatez e oferece revestimento de inegável força para o espírito humano.
Fato que o diferencia do filósofo é que ele pode escapar do círculo acadêmico, transitar no círculo, sair fora dele, chegar ao homem simples - leigo, que simplesmente gosta de ler - e apontar os girassóis do caminho
 Não é, no sentido concreto da palavra, um revolucionário, mas o é da palavra em si, do sentido transcendente inerente a ela; idéia de revolução que está ligada à idéia de existir, apropriação da idéia chamada revolução. Idéia de embelezamento, de oficinas, cuja ferramenta é a palavra: signo da gestação.
Quando o escritor ignora sua condição natural e ocupa o tempo apenas com academias, disputas grupais, luta obsessiva pela fama e coisas do gênero, ele perde a sua essência e se torna desprovido da sua responsabilidade. Esse desprovimento é a sua maior perda.
Comete enganos, e ao enganar-se engana a sociedade humana. Pode trafegar do campo ético para o moral, do filósofo para o religioso, da literatura para a auto-ajuda, um paradoxo no sentido de que é o ajudante universal da construção da alma da sociedade e as suas catedrais brilhantes são edificadas com a matéria prima chamada vida.
É irmão do poeta no sentido de que é ser voltado para a vida, nunca para a morte, tal como o verdadeiro filósofo, que quando, equivocadamente, ignora o poeta se põe incompleto e precisa reorganizar o seu sistema de pensamento.
Aqui reside a revolução do escritor: um ser voltado para a vida, abrindo caminhos, acentuando a luz, construindo mundos, mas sua revolução será sempre a mesma, a que repousa nas bibliotecas, estantes, sebos e memória.
Ele, assim com o poeta, corre o risco de se tornar conservador e até reacionário - estados e modos do ser que nada têm a ver com a literatura, a poesia. Ou então, como muitos poetas equivocados, apenas um arranjador, um manipulador da palavra, um ocupado com a rima, com a sonoridade do verbo, sem preocupação com a essência da poesia, da literatura, transformadoras do ser – humano.
É difícil ser escritor, mais ainda poeta, pois isso sempre significará renúncia ao modo de vida de rebanho (usando expressão filosófica), desprendimento, fuga para outra espécie de vida, e também desprezo pelo saber consentido, imobilizador, além de um profundo respeito pelas intrínsecas necessidades humanas. Se compreender isso, viverá em paz e compreenderá que a sua palavra é indelével. É isso o que importa. No mais, fazer de cada degrau da escadaria, um lugar adequado para se viver, ao lado de professores, jornalistas, e outros.

Biblioteca Mario de Andrade.
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MARCIANO VASQUES

DOMINGO PEDE PALAVRA - 2

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