sábado, 24 de abril de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 5




DOMINGO PEDE PALAVRA
                                 















Marciano Vasques
  

 A LÍNGUA NÃO TEM GOVERNO
 
  

 Pense em algo que não pode ser domesticado. Se na Língua pensou, acertou.

Quando o idioma, feito de palavras, sofre a sua primeira ameaça de controle, com certeza uma comunidade corre o risco de ser vítima de algum totalitarismo, por mais sutil que seja, por mais retórico.
Ao pensar em manipular um povo, comece por governar o “que não tem governo”, a sua oralidade, a sua Língua, a sua escrita.
A Língua não tem jeito: escoa nas feiras, nas oficinas, lambuza-se de graxa, suja-se de vida, de paixões, é livre, solta, vai pela poeira do tempo atravessando gerações.
Bacana era prostituta, hoje tem muita gente bacana (para alegria de Baco? Ou bacana, que já perdeu o fio da meada com a “orgia” faz tempo é o avesso do avesso do avesso?). Antes tinha algo a ver com o jurídico, todavia hoje quase tudo é legal, principalmente (que veio de príncipe) na fala televisiva da apresentadora de programa de televisão, (sem querer ofender a juventude, claro, que se apropriou do texto com propriedade dentro da restrição vocabular original de uma época globalizada). Caetano fundou a transa na capa de um tablóide, hoje tudo se transa.
Palavras ampliam o seu campo semântico, são filhas da época, expressões modificam-se. Quando digo “coitado” não penso mais em quem está em posição de coito, quando digo “Não vá judiar do animal!”, ao menino que atirou o pau no gato, não penso no judeu; é mesmo como o processo de catacrese, ou seja, a metáfora que se desvinculou do seu sentido original.
A palavra está presente no odor do tijolo molhado, no salto dos anterozóides após a chuva, no miosótis, nos amores profanos e nas paixões ocultas, está na queda prateada do peixe suspenso no arco da madrugada; na Praça do Pirulito em Maceió, e nas vilas que foram erguidas com luta, suor, sonhos e sangue das mulheres de cândida, de zinco, de papelão, na periferia ferida de São Paulo e está na visão deslumbrada dos artistas circenses e dos poetas notívagos.
Dos arlequins de Sampa e dos estudiosos de Hegel, dos demônios e os anjos urbanos, dos verdes dos canaviais e das mensagens cifradas dos muros pichados, ela vem clara ou pesarosa, lapidada ou brusca.
Está nas bocas e nos gritos das passeatas que rasgam as cidades, na pronúncia do ourives, na prosa dos bêbados e nos dizeres repletos de ressentimentos, quebrantos e sinas; está nos bares e na poesia, nos altares e na promessa dos amantes.
A independência metafórica é o seu estatuto, e por isso ela não pode ser, em hipótese alguma, assimilada ou constrangida por decretos, pois sua alma decreta-se na vida. A alma da palavra, o espírito dos livros, os ancestrais, os povos que não morrem, nas narrativas míticas; as histórias que as almas generosas contam para as crianças, as cantigas imutáveis. Lá está o idioma: transmitindo idéias, reflexões, ensinamentos, fugacidades e ilusões.
Nos cais, nas docas, nos tórax encharcados de boleros e nas letras das músicas dos morros, na alvorada de cartola e nas dores dos que perdem seus filhos nas manhãs do início do século XXI.
O seu significado só pode ser baixado pelo desejo de cada um. O entrelaçamento de vocabulários nasce nos guetos e nas universidades.

Não se educa por decreto, e a Língua não admite policiamento.

A coisa começa a ficar ameaçadora  quando um governo pensa que pode controlar a Língua do povo, e no horizonte as nuvens negras podem surgir.
Escritores, caleidoscópios da sociedade, são ao mesmo tempo os zeladores do tempo. Eles velam pela beleza das coisas que passam. Nada pode interferir na criação literária, pois a sua fonte e alimento, o seu nutriente e a sua eterna generosidade vêm da impossibilidade de um pássaro sem fronteiras se adequar ao conformismo das coisas que não se movem.
A Liberdade de um povo é seu tesouro primordial. Deixe que digam, que falem...




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