domingo, 18 de julho de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 17


  

FLORESTAS, DOCES E BALAS

Hoje é domingo, e domingo pede cachimbo, mas também domingo pede palavra, e palavra ao pé do ouvido, que é para o ouvido andar ligeiro e espalhar os contos que se contam por aí. Vagar talvez  na ventania dos campos da imaginação, nos floridos e férteis campos do encantamento. Quisera que todos os adultos também fossem assim: os olhos lavados no riacho da poesia, a boca sedenta do beijo da Literatura.
Quisera todos os versos, o profano, o doce, todos, num imenso poema, mais doce do que churro, mais sincero do que a menina de pés descalços a correr nas andanças do letramento da vida, que se perdem na poeira da memória.
Quando eu era mais menino ouvia um conto, que bem mais tarde vim a saber que se tratava de um conto alemão, recolhido entre as folhagens do saber da oralidade de um povo. Minha  mãe - agora eu sei - sentia um gosto imenso em contá-lo e eu, fiapo de gente, pé ligeiro na água orvalhada de riachos, eucaliptos e ciganas, lá estava no cheiro do bolo de fuba e na imaginação do rabinho do ratinho que era o dedo do menino engaiolado que não engordava.
E havia uma bruxa e assim eram as histórias que se prezavam. Deliciosas como bolinho de chuva, como o chocolate quente do bule ou como aquela coisa do Natal, raba...raba...rabanada.
Uma bruxa terrível, que comia crianças, - só não comia menino magrinho - e naquele colo e naqueles braços, me punha a pensar se ela comeria os irmãos em forma de mingau, ou ensopado, ou assados, feito pernil.
Ainda bem que a bruxa era cega e meia tantã, pois senão teria percebido que o dedo do menino era na verdade o rabinho de um ratinho.
Aquelas crianças foram abandonadas numa floresta, e no meio do caminho e do desamparo encontraram uma casinha feita de doces. Mãe não precisava descrever com tanta perfeição a casinha, mas ela fazia isso, e lá estavam todos os doces que eu gostava, todos, e o telhado da casinha era de lambuzar os beiços. Mas era uma utopia.
É disso que se trata afinal: utopia. enriquecimento da imaginação que sempre acontece quando a vida é por demais miserável, quando o sofrimento atinge as condições terríveis de se viver.  Povos em sofrimento insuportável edificam utopias, e assim era a casinha feita de doces diante dos olhos daquelas crianças esfarrapadas, esfomeadas, abandonadas e desamparadas.
Naqueles dias, naquela floresta alemã, as crianças encontraram uma casinha feita de doces. Hoje, numa outra floresta, uma criança numa sala de aula encontra uma bala perdida.

MARCIANO VASQUES

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