domingo, 25 de julho de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 18

Marciano Vasques
  

A FLOR DE MURILO RUBIÃO

 

Numa manhã de setembro li um conto intitulado “A Flor de vidro”, de Murilo Rubião. Hoje setembro se vai, é a última manhã do mês que anuncia a primavera. Setembro não podia partir sem que eu voltasse a pensar nesse conto, que nunca irá embora.
Nomes brotam da garganta ou do pensamento? Saudade convive com reminiscência amarga? Seriam gotas do licor dos sentimentos deslizando pelos verdes da várzea? Gotas impondo-se diante da amargura das reminiscências, presentes no que teria restado da flor de vidro?
Tal como o “verde dos teus olhos se espalhou na plantação”, da canção de Lua, o “sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos” e se espalhava pelo ambiente, pela paisagem cotidiana do conto.
O sorriso dela ia mais longe, acompanhava o trem de ferro, que na monotonia da sua passagem, trazia num crescendo o seu nome, como se fosse um sussurro balsâmico, reconfortante.
O conto de Murilo Rubião fala ao leitor de vidas que não se vão, estilhaços, talvez hematomas, talvez devaneios da alma, que permanecem inquebrantáveis, como quiçá uma flor de vidro, que sobrevive intacta na memória das coisas. Metáfora dos fragmentos da memória insistente.
Reencontro de vidas, de corpos que parecem não envelhecer, amores da fazenda, entre aleias de eucaliptos. Histórias jamais interrompidas, alimentadas por insônias, noites veladas pelas eternas moscas.
Sonhos que são seivas, que renovam o corpo, que rejuvenescem, que devolvem o tempo aos amantes, aos que nunca se foram. O texto de Rubião fala dessas coisas. De pessoas que vagam nos limites dos sonhos, que reencontram o brilho dos olhos.
Amores vividos intensamente nas matas, entre orvalhos e folhas reluzentes, fotossínteses de auroras, orlas, trilhas amorosas oferecidas pela amizade da natureza.
Há um lugar no qual um namorado retorna com uma flor azul. Um lugar que está num conto, um conto de aguaceiro, do movimento do trem, e a visão da flor de vidro.
A palavra grávida de sentidos (Góes), nos fala de uma flor de vidro, - de uma imagem onírica?-, do trem de todas as tardes da janela da fazenda.
O texto solicita a resposta ativa, a recriação pela leitura, aprofundamentos, profundidades que surgem nas camadas das releituras, pois cada leitor é um palimpsesto, um velho pergaminho no qual os significados vão se sobrepondo a cada novo olhar, num texto que sempre se transforma pela ação do leitor.
Catalisador da imaginação ativa, o conto desperta o leitor para a ação (a ação do olhar), para a busca de significados, pois “A melhor arte não é a que se apresenta numa bandeja de prata, mas a que desperta a capacidade do leitor para a ação” (in Nachmanovitch, Stephen: Ser Criativo, Summus editorial,São Paulo, 1993).
Época de amores efêmeros, excesso de imagens, contribuições vanguardistas das tecnologias, é bom retornar ao conto da palavra que segue mansamente no mato varrido pela chuva, e nos interrompe a corrida cotidiana, para nos lembrar que o apito do trem de ferro talvez nos queira dizer algo.
Vale a pena o leitor entrar em contato com o conto, passear nele como se fosse igual aos amores “que terminam na mata”, tentar decifrar o mistério da “flor de vidro”, estabelecer as conexões, desvendar o aparentemente insondável, mas sobretudo, ir de encontro a uma linguagem poética, que busca na simplicidade da narrativa a lapidação dos sentimentos, coisa de orvalho passando do capim para os pés.



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