sábado, 3 de julho de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 15

Marciano Vasques
 

 CALEIDOSCÓPIO DA ALMA


Pus-me a pensar que se conta a história do povo brasileiro através da poética presente em nossa canção. Pode-se, num recital poético, numa encenação, contar essa história. Isso não é novidade e há grupos espalhados nas periferias do país que fazem isso, às vezes pincelando o empreendimento com as cores de um cristianismo humanizado, colocando-se o cristo na história. Geralmente são grupos que montam suas encenações para apresentações em creches e em entidades populares. Alguns artistas do povo contentam-se em cantar nas manifestações populares e apareceram na tv Globo em cenas de reportagens, como o caso do casal Justino e Magnólia, que nunca compreenderam a necessidade de uma aproximação com a profissionalização de seu próprio canto, e quando os levei à TV cultura, na gravação do Programa da Inezita Barroso nem se deram conta de como o caminho deles está traçado sobre uma ilusão, e de como poderiam ter levado o seu canto para o palco das luzes, além do palco da luta política.
Com um pouco de audácia é possível a suspensão do cotidiano culturalmente padronizado, onde a cultura autêntica do povo está pulverizada, e as necessidades midiáticas regidas pela “força da grana” impõem um sabor insosso e uma coisa sem graça como “aquilo que o povo gosta!”.
Com esta suspensão, encontra-se a história do povo brasileiro nos versos da nossa canção: Patativa do Assaré, Celestino, nossos compositores, e suas letras poéticas: Lata dágua na cabeça, Ave-Maria no morro, Camisa listrada, A triste partida, Súplica cearense, e seguimos em frente até o porto do requinte, a linguagem poeticamente burilada, o artesanato, a nata da arte, de Caetano, Gil, Chico Buarque, e outros...
Nossa canção significa o romance brasileiro, a história do povo é cantada através dela, o Brasil do sul, o Brasil do nordeste...

A nossa riqueza cultural é imensa, musicalmente imensa, poeticamente imensa, dos doces de Cora Coralina à ciranda que mora na ilha de Itamaracá. 

A nossa herança é múltipla, herdamos o sentir lusitano, mas fomos abençoados pela África, a grande dama de leite da Europa, sem contar a mescla de gentes que fazem do nosso país um imenso caleidoscópio humano, múltiplas formas e cores, que transformam a nossa canção no imenso palco no qual canta-se a história do povo brasileiro .
Magnólia e Justino simbolizam nossos artistas da periferia, tantos que daria para abraçar o país numa enorme ciranda, mas como é possível que essa gente tenha se tornado apenas consumidores passivos, passageiros do trem da Central do Brasil ( Uma homenagem aos velhos trilhos...)?
A cultura autêntica do povo não é de toda reacionária, embora seja geralmente conservadora, tomando-se aqui o sentido estrito da palavra, o verbo em si: conservar. Não é verdade, obviamente, que a cultura do povo seja a música empobrecida que se toca na rádio, as moças que rebolam mostrando a bunda, as infelizes moças, com seus seguidores, milhares de sobrinhos. Infelizes, mas com um bom talão de cheques, dirão alguns. Sim, mas serão eternamente infelizes e tristes, porque incapazes de viver uma vida autêntica, e por esbofetearem a consciência com seus deleites insensatos. Incapazes de uma graciosidade autêntica, seguem mostrando a bunda e rebolando com suas músicas idiotas, distantes da vida cheia de vida do povo, e acreditando que estão vencendo na vida artística, sem compreender que a memória do futuro passará por elas indiferente.
O nosso povo não merecia isso, mas os ditames da razão não se impõem diante do poder econômico, no entanto, um dia, rebola&bola vai passar, não é, compadre? E os olhos aleijados, que se habituaram a ver beleza onde há equívoco, finalmente estarão livres e límpidos.
O que herdamos do sangue lusitano, do sangue africano, a sensualidade, a graciosidade, o lirismo, o colorido, essa mescla de sentimentos, essa efusão de ser, essa vontade de canto, essa fibra, essa febre, essa ganância do coração por saudades, adeuses, partidas e chegadas, esse modo de ser, que pode estar pulverizado no abandono, mas que jamais será totalmente dissolvido, pois sempre restará nalgum canto a possibilidade do renascer,tudo isso não há de ser em vão, e as moças ridículas e sem graciosidade, das bundas, elas com certeza terão um encontro com a consciência .
A patativa do norte, a canção celestina, Luiz do baião, o romance do povo brasileiro escrito nas letras da nossa canção, nada será em vão, e após a passagem do vendaval da vulgaridade, da pobreza musical, do descaso atual, o marasmo, a idiotice que se apossou da música, transformando-na no mais infeliz dos acontecimentos comerciais de nosso tempo. Nada será em vão e certamente a poesia descerá sobre a terra, como o Natal que um dia outros poetas clamaram.
A poesia descerá sobre a terra, o que significa dizer, ela estará definitivamente no coração humano, e retomará a sua condição de contadora de histórias, e registrará em nossa canção a história do povo, e a linda pequena cantará a canção saudável e haverá festas de bailados, e coloridos de quermesses e parques, e alegrias sem remorsos, e uma felicidade valsará em cada coração .
O que herdamos é essa gentileza poética, esse caleidoscópio que é a nossa alma. Nela se refletem cores e áfricas.

Nossa alma tem em sua natureza um caleidoscópio e é sobre isso que divagam os poetas, os que vagam em lumes, os que extravasam, os que extrapolam, os que sinceramente se recolhem para proteger contra o vendaval os seus afazeres poéticos.



 

Nenhum comentário: