domingo, 29 de agosto de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 20


NA RÁDIO GALINHEIRO

O progresso chegou ao Jardim Lisboa! A televisão! Maravilhosa invenção científica! É igual ao cinema! As imagens aparecem na tela!
E agora os nossos reclames: Sabonete Palmolive, Sabonete "Vale Quanto Pesa", Firestone.

Menino miudinho juntava o capim e transportava para a carroça. O Português cortava e os meninos carregavam. O Prêmio era o Zorro, com a sua espada que cortava o ar fazendo assim: Z.
Dava gosto ver meninos desembestados na beira do rio ajudando a garantir o alimento do cavalo do português, o único que tinha a "televisão". Depois, à noite, era um tal de talco e brilhantina e camisa no ferro a carvão, um exagero que só mãe. Para que se embonecar tanto? Menino meu não vai sujo na casa do Português. A sala mergulhava no abismo da luz azul da televisão e os meninos com os olhos vidrados na tela acompanhando o movimento ligeiro da espada.
Ás vezes o menino miudinho ouvia as conversas do pai no bar do Zé das Cabras, que era uma venda pequena, diferente da venda do português da televisão, mas era parada obrigatória para os homens que retornavam das fábricas molharem a garganta com o rabo de galo e falarem do moleque que havia surgido no Santos, antes de voltarem para as suas patroas. O pai era um deles. Sempre que retornava deitava o seu boné da CMTC no balcão e se atualizava. Aos domingos levava o menino.
Depois, no quintal, lá estava o menino miudinho no galinheiro, saltando de poleiro em poleiro. Agarrava fortemente os caules descascados de goiabeira transformados em poleiros e ia desfiando a sua programação. Um dos programas chamava-se Repórter Esso, no qual ela dava as notícias. Falava da Cigana Blange, que cantava pelas ruas, bêbada que só ela. A mulher levava uma surra do marido todas as noites e dormia na rua. Certa vez ela fez uma profecia aos meninos: aquele campo onde eles corriam livres como relâmpagos um dia não mais existiria. E no lugar do rio teriam uma grande avenida.

Ninguém levava a sério as suas previsões por causa da bebida.

Depois das notícias, os reclames: Cigarro Continental, a Lambreta, o sabonete das estrelas...E depois a radionovela: Na noite chuvosa Bianca atropela um desconhecido, desce desesperada, envolve o estranho com a sua capa, e chora rogando aos céus que aconteça um milagre. Quem será o homem que ela atropelou? Seus olhos encharcados miram-se num sorriso ao reparar que ele está vivo.

Esse menino vai ser alguém muito importante, dizia a mãe que já se acostumara com aquela infindável algazarra de palavras nas narrações radiofônicas que vinham do galinheiro. Não podia o garoto supor que ela estivesse acompanhando aquilo. Parecia tão envolvida quarando o lençol ou dissolvendo a pedra de anil na tina!
Ele permanecia firme na sua rádio Galinheiro. E de poleiro em poleiro, a programação continuava: Creolina Cruz Azul, Leite Ninho, Toddy, Seven Up, Crush, Quem bebe Grapette repete! ...E os gatos no viaduto do Chá.
Atenção ouvinte! Fuga de gatos do viaduto do Chá!
Não entendia o que significava viaduto do Chá, mas finalmente chegou o dia, iria conhecer o tal viaduto. Embarcou com a mãe no ônibus, o coração tamborilando na expectativa da grande aventura. Sentaram no banco do fundo, bem longe do motorista. E não é que no meio da viagem, ali, na Vila Matilde, os gatos que até então estavam quietos na caixa começaram a miar?

Não teve outro jeito, a mãe passou a miar cada vez mais alto e obrigou o menino a fazer o mesmo, para que os passageiros pensassem que fosse brincadeira. Quando a mãe ficava brava, era melhor sair de baixo, pois a mulher ralhava trovoadas, e como não gostou da forma como os passageiros olhavam, passou a convidá-los para miarem:
Nunca viram alguém miando? Por que não miam também? Vamos! Todos miando! Acordem esse velho aí! Está olhando por que? Nunca miou?
Chegaram à praça Clóvis. O chofer teve vontade de chamá-la de maluca, mas nem se atreveu.
Aquele é o prédio da Light. Mãe! O Mappin! Olha! O teatro! E assim ia mostrando ao pequeno a cidade. Puseram os gatos sob o viaduto do Chá, e o menino ficou impressionado, devia ter mais de cem gatos ali.
Ou o menino corria solto no eucaliptal ou estava no galinheiro com a sua rádio.
E atenção para o Repórter Esso!
Boas noite, senhores! Triste notícia: um soldado ferido sendo arrastado pela correnteza. Quem o salvará? Nenhum helicóptero! Nenhum socorro! E a tempestade cada vez mais forte. Triste fim para um soldado que tanto lutou...
Foi assim: Chovia, e quando a chuva já estava se arrefecendo, o menino foi para o peitoril da janela e se pôs a brincar com seus soldadinhos de copinho de maria - mole com miçanga. Vivia grandes aventuras quando um dos soldadinhos de plástico caiu da janela e foi levado pelas águas da valeta. Ninguém havia visto uma expressão de tanto desespero naquele rostinho sardento como naquela tarde. O garoto correu para a cozinha, implorou para que a mãe o deixasse sair para o quintal, mas com aquela chuva, nem pensar, e com os olhos repletos de água de choro o menino assistiu ao desaparecimento do seu herói, tragado pelas águas revoltas e cruéis.
Nem sempre era dia de chuva, às vezes o sol se esbaldava nos terrenos baldios, às vezes os baldes rolavam pelo quintal e as folhas saracoteavam no ar com o vento gostoso que vinha dos bambuzais.
Mas dia ensolarado mesmo eram os domingos da caderneta. Lá ia o pequeno, todo engomado, aroma de carvão e talco no ar, junto ao pai, junto é força de expressão, pois corria pela rua passando pelos gansos, pela galinha d'angola, – Quebra queixo! Amolamos sua tesoura! – Sardinha fresquinha, traga a sacola e a bacia!, numa velocidade que pode ser comparada a dos meninos que anos depois iriam correr nos finais de tarde para ouvirem o "Juvêncio, o Justiceiro do Sertão".

Dia de pagar a caderneta era uma festa. O Português deixava as crianças escolherem quantos doces queriam, e o pai ganhava um garrafão de vinho. Isso sempre acontecia quando o pai pagava a caderneta. Suspiro rosa em forma de coração, mas o menino escolhia mesmo eram os copinhos de maria - mole por causa do soldadinho.
A vizinhança toda acompanhava aqueles dois. Quando o pai retornava com o garrafão de vinho e aquele sorriso imenso atravessando o rosto e a criança com o pacote repleto de doces, todos já sabiam que haviam pagado a caderneta.
Além da Rádio Galinheiro, a vila tinha os seus mistérios, e muito vaga-lume ao final da tarde. Havia mais vaga-lumes que portugueses.
Tudo era recolhido pelo menino com os seus olhos atentos de repórter e tudo era noticiado por aquele locutor incansável, que até arrancava lágrimas dos seus ouvintes imaginários quando narrava os dramas e o heroísmo da vida de um jogador de futebol.
Qual o homem que ao se barbear diante do espelho na coluna de uma varanda, não iria se emocionar até as lágrimas com a vida daqueles heróis?
Qual mulher não iria sofrer angustiada com o drama de Bianca que numa noite de tempestade atropelou um desconhecido numa estrada e por ele veio a se apaixonar, mas o seu amor era proibido, pois o homem era casado?
Qual mulher não iria usar um daqueles sabonetes? E qual homem não iria se apaixonar por aquela lambreta ao ponto de um dia sair do Mappin com um carnê para pagar em suaves prestações?
Por isso a Rádio Galinheiro tinha a maior audiência.
Só não pôde dar uma notícia: Estava certa a cigana Blange, que não era cigana coisa nenhuma, apenas fazia as suas previsões de realejo em troca de pinga, pois a mulher bebia mesmo, e ninguém se conformava: como podia continuar bebendo se apanhava todas as noites e era obrigada a dormir ao relento?
Cigana da voz forte que percorria o eucaliptal com boleros, e rasgava a tarde quando cantava "Sonhar Contigo". A sua voz era igual luz de lampião. Não podia faltar. O que seria da vila se aquela bêbada parasse de cantar?

E a Rádio Galinheiro, por que não havia nem mais galinheiro, não deu a notícia que nenhum menino gostaria de ouvir. Um dia os tratores amarelos surgiram, aos poucos, um por um, e então aconteceu: o rio foi canalizado, e nas suas margens surgiu uma enorme avenida, e no lugar de eucaliptos ergueram-se sobrados, e as ruas de poeira valsando ao vento serelepe foram asfaltadas e no lugar de gansos e de galinhas d'angola, apenas carros e motos, e em vez de pirilampos com suas luzes azuladas, apenas semáforos e letreiros das lojas.
Para onde terá ido tudo aquilo? Para onde terá ido a Rádio Galinheiro? Onde estarão aquelas coisas?
Aqui.


DOMINGO PEDE PALAVRA - 20
Marciano Vasques

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