Marciano Vasques O COLECIONADOR DE LÁPIS DE COR |
“Se sabe que el que vuelve no se fue”
Pablo Neruda
Pablo Neruda
Olhou para a coleção de lápis de cor e fechou a porta. “Quanto já terá? ” Perguntou-se. Mais de mil, com certeza, pois começara faz anos. Coisa de maluco! É o que no pensamento dizem todos. Deixou registrado no cartório a sua vontade de que os lápis fossem doados para uma instituição que cuida de crianças carentes. Após a sua morte. Claro. Antes continuará com ela, até o infinito.
Era uma promessa.
Na infância a mãe não conseguia comprar um lápis de cor para ele. Então jurou que quando crescesse teria tantos quanto quisesse. Iniciaria a coleção para que nunca viesse a esquecer o seu passado. Faz gosto ver todos que vão à sua casa e se impressionam com a quantidade de lápis.
Há poema no nome Apoena, pensou ao saber da morte do indianista. Olhou os jornais. Nas capas três mortes. “Como deve ser bom ser alguém importante e sair na capa do jornal, ter a sua morte em manchetes”. Um foi o Super Homem. Outro um escritor mineiro. O terceiro viveu com os índios. Mortes que merecem manchetes, mas ele não: se morrer, será apenas um desconhecido, que nada fez de importante na vida, além de colecionar lápis de cor.
Sempre gostou das mortes ilustres. No dia em que morreu Jorge Amado chorou. Em sua vida só leu um livro do escritor baiano: Seara Vermelha. Mas o que já fantasiara com a cena da injeção que o tal médico Epaminondas dava na tal de Marta...
Tem um amigo que nasceu no dia da morte de John Lennon. Sua mãe chorou muito quando soube. Evitaram ao máximo a notícia. Se pudessem deixariam passar todo o tempo do resguardo, mas sempre tem alguém que conta, e ela ficou sabendo em menos de um mês. Então jurou que o filho seria um grande lutador pela paz e defenderia a solidariedade entre os povos.
A mulher pôs na cabeça que o filho seria importante por ter nascido no dia da morte do ex - Beatle. Como para ela, em sua juventude, o cantor simbolizava a luta pela paz, então o seu filho...
Infelizmente a morte do jovem não virou manchete. Fora apenas um assalto. Reagiu de bobo. Mas o colecionador de lápis de cor ficou triste e depressivo. Afinal eram amigos. A aquarela dentro do peito a resistir como vela votiva perdeu as cores. Seu amigo sempre contava a história do nascimento no dia do ídolo da sua mãe, e jurava que ainda faria algo pela paz.
Os dois se conheceram na adolescência. E a amizade vingou.
Estudaram juntos, cultivaram o prazer pela boa música, não se apegaram aos modismos. O gosto musical foi se acentuando com o passar do tempo e tornou-se um gosto ilustre (gostavam de dizer isso) depois que assistiram ao filme “Buena Vista Social Clube”. Viviam a repetir que gostariam de ser na velhice parecidos com o Compay Segundo.
Lamentável que um jovem que nasceu no dia do assassinato do John Lennon venha a ser assassinado por causa de um trocado.
O colecionador chorou muito no enterro do amigo. E fez uma promessa para si. Enquanto o corpo baixava, ele jurava sob o guarda - chuva azul que o protegia da garoa interminável, que iria dedicar a sua vida à paz e a solidariedade entre as pessoas. Só não sabia como fazer isso, mas encontraria o jeito certo.
Passou a vasculhar pela internet o nome de tudo que é ONG.
De alguma forma iria tornar-se um benfeitor da paz. De alguma maneira iria contribuir com a solidariedade humana...
Da sua janela ouviu as piadas no quintal sobre a morte do Super Homem. “Ele pensou que ia voar, por isso não se segurou e caiu do cavalo!”. É sempre assim: piadas, conversas tolas, assuntos medíocres.
Nunca pronunciou uma palavra sequer contra Michael Jackson. Nunca fez piada com a dor e o sofrimento alheios. Nunca entrou na da mídia mundial quando ela cisma com alguém. Sempre foi solidário para com as vítimas do poder.
Falta algo em sua vida. Emprego nunca deu muito certo. Fez um teste para trabalhar num banco, mas na entrevista foi reprovado pelo psicólogo. Não atende ao perfil exigido pelos bancos. Trabalhou durante um ano no correio, como carteiro, mas pediu a conta. Então montou uma banca de jornal. Adotou ao pseudônimo de Zero e pôs o nome da banca de “Banca do Zero”.
Em homenagem a quem? Perguntaram alguns clientes. Sei lá, talvez a um romance do Inácio de Loyola Brandão. Você leu? Apenas umas duas ou três paginas. Mas gostei do titulo.
Isso é comum nele. Ter em casa livros que nunca abriu, como o “Romançario”, de Stella Leonardos. Nunca tocou nesse livro. Nem sabe mais como o adquiriu.
Para cada um dava uma resposta diferente sobre a história do nome da banca. Para um soldado disse que é para homenagear o seu personagem preferido dos quadrinhos, o Recruta Zero.
Arranjou uma namorada e já pensa em casar, afinal quem passa dos vinte anos solteiro corre o risco de ficar sozinho.
A namorada além de ser “instruída”, é leitora numero um de Literatura Infantil, vive puxando conversa com ele sobre o assunto, como se ele realmente tivesse vontade de ouvir.
“E viveram felizes para sempre”. Muita gente contesta esse final nos contos de fadas. Mas é por que não entendem. Esse final nada tem a ver com a tradição ocidental cristã. Realmente nessas historias os casais vivem felizes para sempre, pois o “pra sempre” está ligado a uma idéia diferente da nossa, que somos regidos pela instituição cristã do casamento, lá o “pra sempre” significa viver eternamente o momento. A noção de eternidade nessas histórias é diferente. O momento é eterno, A eternidade está no momento que se vive.
“Como no poema do Vinícius?”
“Mais ou menos”. Responde a namorada. “É algo mais ou menos assim, que seja eterno enquanto dure”.
Ela formou-se em letras e em seguida começou uma pós de literatura infanto-juvenil.
Ele começou a sofrer influência da namorada e do seu próprio trabalho na “Zero” pois sempre sobrava um bom tempo para a leitura e acabava lendo de tudo.
Decidiu ser escritor.
Não de literatura infantil, mas de histórias para adultos, contos. E pôs-se a escrever o primeiro. Se conseguisse iria escrever outros e mais outros, e um dia escreveria o seu primeiro romance.
Colocou no papel as idéias sobre paz e solidariedade. Mas a namorada foi severa nas críticas, e ele pela primeira vez passou a sentir-se um zero de verdade.
“Falta harmonia nos textos, e as idéias se repetem. E pior de tudo, não tem uma idéia central, um eixo para conduzir. O que você quer dizer afinal? Qual a sua idéia de paz e de solidariedade? Precisa ser mais convincente. E a linguagem não está boa, não está nada literária. Precisa reescrever tudo, do começo ao fim. Falo essas coisas porque te amo”.
“Não vou desistir! Se me tornar um escritor famoso, quem sabe conseguirei levar adiante a minha idéia de contribuir com a paz, e talvez possa lutar pela paz mundial. Sei que pode parecer ilusão, pois um escritor não tem nenhuma importância no panorama mundial, ele nem tem voz, quem afinal vai ouvir um escritor? Escritor é para ser lido, não para ser ouvido. Sei da ilusão de muitos que vão às Bienais, e querem ser reconhecidos pelo público, como se fossem um Caetano Veloso, um jogador de futebol ou um astro de Globo”.
Não se deu conta, mas estava se tornando perturbado pela impossibilidade de se contribuir com a paz e a solidariedade. Começou a ficar angustiado.
No dia em que leu as três mortes nos jornais já estava pensando bobagens. E tendo dentro dele a estupidez da morte do amigo quedou-se em indagações perigosas. Vale a pena viver? Qual o sentido da vida? Se nem consigo escrever um conto? Se nem consigo pensar numa forma de contribuir com a paz e a solidariedade?
Pensou em escrever um conto para o publico juvenil, com personagens adolescentes, mas não veio a inspiração. A sua vida de adolescente não teve graça, nada fez de interessante. Passou boa parte ouvindo musica, a outra foi socado, como se fosse vaso vazio, com conhecimentos de física e de química que nunca usou...Tornou-se uma especialista em esquecer formulas e aprendizado...
Esquecer é uma defesa do organismo. Lembrou-se de ter ouvido isso e numa mais esqueceu dessa frase. Apenas das coisas que aprendeu no colegial.
Não deu cabo de sua vida porque conclui que só valeria a pena fazer isso se tivesse uma vida que valesse uma manchete, mas nunca voou nas telas do cinema, nunca escreveu um conto, nunca lutou em defesa dos direitos indígenas, nunca fez nada que viesse a tornar a sua morte uma vendedora de jornais.
Se a sua morte vendesse jornais, que bom seria! Mas nunca passou mesmo de um zero. Teve uma fase em que decidira tornar-se artista e pintou alguns quadros sobre os quais nada teria a declarar numa entrevista, por pura falta de objetivo. Pintou sem rumo, jogou as cores na tela e desenhou coisa sem nexo, aliás, confessou um dia para a namorada que privilegiava em sua pintura a estética do feio, e dizia com convicção que isso estava bem de acordo com a arte contemporânea. Ela concordou.
Não seguiu a carreira de artista plástico por falta de condições para comprar material e pagar uma faculdade.
O dinheiro da banca mal dá para viver. Vivia se queixando.
Certo dia na calçada a dedilhar um violão viu aproximar-se um menino.
O garoto era seu conhecido, morava nas redondezas. Estudava na escola pública da Vila Nova, um bairro de ocupação vizinho ao seu.
-Você estuda naquela escola de lata?
-Sim!-
-E o que faz por aqui?
-Cato papelão e plástico, ajudo a minha mãe.
De fato, pouco adiante estava o carrinho de madeira quase cheio de papelão e garrafas de plástico.
Então ele lembrou bem do menino. Morava na beira do rio, na avenida Caititu e não tinha material escolar, pois o que ganhara da prefeitura já acabara.
-Gosta de colorir desenhos?
-Sim.
-Tem lápis de cor?
-Não.
-Gostaria de ter lápis de cor que nunca se acabasse?
O garoto não entendeu.
-Ele entrou, trouxe uma dúzia e entregou ao pequeno.
-Você vai colorir sempre que quiser, só não deixe que lhe tirem os lápis. Quando eles terminarem, volte aqui.
O menino foi embora feliz com os lápis.
Ele entrou e ligou para a namorada.
-Estou feliz.Descobri uma forma de ser solidário. E estou em paz comigo mesmo.
No dia seguinte foi ao cartório e registrou uma nova declaração.
-“No caso de minha morte, que os meus lápis de cor sejam entregues a todas as crianças que passarem descalças em frente da minha casa e que não tenham dinheiro para comprar um lápis sequer. Se eu não tiver lápis é porque já os dei todos, para os meninos da minha época, que são as crianças da minha vida. Do meu presente.”
Pela primeira vez sentiu-se um super homem. Descobriu a sua forma de lutar pelas crianças, entendeu que a sua contribuição é pequena, mas é a que lhe coube. E seguiu em frente.
Numa manhã ao sair de casa ouviu no rádio a canção do Toquinho.
Dias depois pintou a banca e mudou o nome de Zero para Aquarela.
Escreveu um conto intitulado " O colecionador de lápis de cor” e enviou para uma editora.
A namorada ficou torcendo.
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