domingo, 19 de dezembro de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 39




A memória nos salvará!
   

A memória nos salvará! Não é possível seguir durante muito tempo sem retornar à memória. Ela nos devolverá a lucidez, a paz, a harmonia e nos trará a felicidade. Precisa ser cultivada desde cedo em cada pessoa, nos jovens, nas crianças. Devem ser erguidos novos estudos sobre a memória, para que ela seja cada vez mais requisitada, cada vez mais faça parte da vida de cada um. Não estudos científicos apenas, mas filosóficos, principalmente.
         As pessoas que vivem no Saboó, em Santos, perto do cemitério da Filosofia, talvez vivam em estado de memória. Quem sabe tenham nos entrelaçamentos dos neurônios a mesma maresia que invadia as casas, os carnavais antigos, o Monte Serrat, a pedra branca na areia, os trilhos, o sol, Rosema banhada de confetes, luzes despedaçadas nos paralelepípedos, o jogo do bicho, os barcos, a malandragem, as prostitutas, os vestidos coloridos, a alma portuguesa. Quem sabe tudo só encontre agora o seguro cais na poesia. A literatura é a morada derradeira da vida.
         Coentro, salsa, leite de coco, o aroma do peixe moqueado envolvido na folha de bananeira invadia o quintal. Aroma que ficou na memória dos sentidos, como ficou a fuligem nos sulcos do rosto da minha mãe, mastigando um bagaço de cana no quintal, como ficou o balde que rolava na ventania, como ficou a roupa estendida no varal, o boné da CMTC num cabide, o diapasão do amolador de tesoura, a voz do peixeiro e a voz do carvoeiro e o fósforo riscado numa noite, a voz  doce que contava histórias nas quais filhos que batiam nas mães eram possuídos por uma maldição que os transformava em lobisomens.
         Memória dos sentidos nos verdes que saltavam, na luminosidade dos insetos, uma joaninha, uma libélula, um gafanhoto, uma cigarra enterrada na areia num sol quente de meio-dia. Coisas que se perdiam, que partiam diariamente, se desfazendo, se dissolvendo, desaparecendo,
         A memória dos sentidos, o primeiro perfume da menina do amor platônico, casto; seus olhos, sua pureza, sua timidez. As conversas pleonásticas, a voz de meu pai, queixas, o vinho, as castanhas, as qualidades do café, o governo, a ditadura, os comunistas, palavras que chegavam aos meus ouvidos, como mamona...
         A memória dos sentidos é a extensão das coisas.
O sonhador, a necessidade urgente do sonhador como o salvador da sociedade humana. Sociedades de cartão de crédito, tecnologia avançada e  comunicação instantânea, nas quais a criatura da indiferença invade corações e ergue monstros automáticos. Sim, a indiferença planeja monstros automáticos que obedecerão aos sistemas, de cérebro invisível, mas com tentáculos visíveis. A imagem é forte. Mas, que outra poderia ser utilizada? 
Só o sonhador trará o equilíbrio, a harmonia perdida, o sonhador é a personagem que teria o destino da cicuta, o destino da cruz, para usar uma figura que se ampliou muito na humanidade, a idéia originalmente mitológica de destino. E as figuras do veneno tomado pelo filósofo (aquele que é acusado de envenenar a sociedade e corromper a juventude, é forçado a tomar o veneno dos representantes da sociedade!) e a cruz de Cristo, como símbolos fundamentais  para se compreender a insensatez humana.
         Sonhador: o filósofo grego ensinando geometria aos escravos, um teólogo afirmando que a igreja é um relâmpago puxado por um carro de boi, o poeta Rimbaud ensinando o Alcorão aos meninos, o sanfoneiro com a alma do povo, que tocava num dia frio na praça Chamego o poema musicado de Patativa de Assaré, e sua contribuição maior para a humanidade na canção que fala do pássaro com os olhos furados para cantar mais bonito...
         A poesia, os cânticos bíblicos. Sanchoniathon, encantado diante do vendaval que erguia as ondas do mar criava o espírito de Deus. O jovem com a perna amputada e o rosto banhado de lágrimas, no convés, desesperado, querendo morrer, e na murada do navio olhando as ondas agressivas contra o casco, as espumas formadas pelo choque,  e o céu  que escurecia trovejando, o peito arrebentando  e o seu grito lançado em sangue aos céus: Espumas flutuantes. Espumas flutuantes. Espumas flutuantes!
         O poeta Ezra Pound numa transmissão radiofônica pedindo  apoio ao ditador Benito  Mussolini. Erasmo de Roterdam, o homem que via na imprensa o instrumento maravilhoso que abriria as portas de um novo tempo, escreve em sete dias o ELOGIO DA LOUCURA, obra impressionante do espírito humano, um dos seus maiores patrimônios, escreve-a na casa de Thomas More, seu amigo, como remédio para as insuportáveis dores renais; uma critica impiedosa da arrogância e  da insensatez humana, nascendo da dor e do atroz sofrimento .
         Sofrimento humano, a memória de um aspecto da condição humana.
Um homem segurando a minha mão na estação Sorocabana de Santos, que foi embora, foi destruída, acabou, não existe mais. Em seu lugar foi erguido um supermercado EXTRA, triste imagem dos nossos dias, templo do consumo substituindo uma estação ferroviária que jamais deveria ser demolida. Mas a estação está no único lugar possível, a memória afetiva. Memória afetiva que precisa ser resgatada, renascida, estimulada. É preciso um investimento fenomenal na memória afetiva para que não aconteça mais o que aconteceu com a estação ferroviária de Santos.
         Um gesto, uma xícara estendida com chocolate quente, mãos que tremiam, cortavam o pão e passavam manteiga numa manhã fria em Ribeirão Pires. E me estendiam o cobertor numa noite chuvosa. Quanto amor! Quanta ternura! Não encontro outras palavras. Para onde foi aquela manhã fria em Ribeirão Pires? Para onde foi aquela noite chuvosa? A memória afetiva precisa ser urgentemente resgatada!
         A memória afetiva é a memória do coração, da alma.
Um outro tipo de memória precisa de cuidados, de atenção, de gesto amoroso. É a memória literária. Uma das mais impressionantes do ser humano. Patrimônio de séculos, desde o primeiro fragmento em estela, a primeira argila, o primeiro papiro, os palimpsestos. Nós, os humanos, somos nossos próprios palimpsestos por causa desta memória.
         Como evocar a memória literária? Ela nos traz o mundo paralelo, a segunda vida vivida por cada um. Quem nunca leu um livro viveu apenas uma vida.
         O mesmo pode ser dito sobre o teatro? Sobre o cinema? Sobre outras formas de entretenimento ou manifestações culturais do homem? Não.
         O livro é o único que estabelece um contato solitário entre você e a segunda vida, que é a vida literária.Você é incompleto sem uma vida literária. Os personagens da literatura são como os seus vizinhos, as pessoas que encontra na feira, os que preparam a moqueca de peixe; elas estão protegidas, preservadas, a sua espera nas páginas de um livro.
         As suas impressões, a sua leitura, as imagens que você criou, a forma como interpretou, as emoções que sentiu, são únicas. Entre você e o livro (o objeto que tem alma!) não há intermediários, não há ninguém, só há você, o autor e a segunda vida. Um livro, além de solitário, é para sempre (Ver A ALMA DO LIVRO, artigo de minha autoria,  publicado no CORREIO DO SUL, Varginha/MG), essa é a sua alma!
         Mas quando você o reler, ele será outro livro, porque você será outra pessoa. Experimente reler algum livro que leu em 1978, seja Dostoievski, Erich Frohmm, Goethe, enfim, qualquer autor, qualquer livro que tenha lido. Verá que agora é outro livro, e descobrirá maravilhado que você é outra pessoa. Só o livro pode fazer isso!
         A memória literária é a memória inventada pelo ser humano e precisa ser cultivada diariamente, para que a sociedade seja humanizada. O livro espera por esse acontecimento extraordinário.
Aqui encerro essas reflexões sobre a memória, com suas prováveis divisões em memória dos sentidos, do sofrimento, afetiva e literária.

Marciano Vasques

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