SEBOS, CANÇÕES E UM ESPANTALHO POR AÍ
Vou parar de pensar em você
Pra prestar atenção na estrada
Roberto&Erasmo
Quando tudo começou? Quando o desmanche da emoção deu seus primeiros passos sem que prestássemos atenção?
Quando começou a tal evolução mental de uma nova geração que é capaz de fazer a lição de casa com fone de ouvido e assistindo à NET, e ainda polegarizando o celular? E, de quebra, lendo as páginas de um gibi? Quando começou a acontecer? Um jovem é capaz de fazer até cinco coisas ao mesmo tempo? Isso é de fato uma evolução do cérebro? Certamente. A estudante Sônia, do curso de Assistência Social, da Universidade Castelo Branco, diz que isso tudo teve início com o Telemarketing, quando a telefonista começou a falar com uma pessoa ao mesmo tempo em que atendia ao telefone.
A televisão também deu a sua contribuição. Hoje, por conta de décadas diante da tela, com o olhar direcionado, as pessoas estão conseguindo falar com o outro sem olhar nos olhos... Juro!
Essa evolução da nova geração é deveras interessante e deve interessar a um sistema de produção em série. A transformação de seres pensantes em automatos, em simulações, em espectrais genealogias da era internética, tecnológica, pois enquanto se “executa” cinco coisas ao mesmo tempo, o raciocínio vai aos poucos se atrofiando por falta de uso. O uso da razão vai se dissipando, e a reflexão põe a viola no saco e some do horizonte.
Mas, e o desmanche da emoção? Digo que isso tudo teve início quando se começou a baixar música pela internet... Não que seja um mal em si ter uma canção disponível em dois minutos... Mas, a emoção de um disco que o sujeito foi buscar, às vezes até viajando para outros países... Isso acabou. E hoje tem quem colecione música. Mil canções...
O e-mail? Sim, é o espírito da época... É emocionante como uma carta? Tudo o que pode ser facilmente deletado causa perplexidade, pela sua emblemática natureza. Mas que é bom enviar uma mensagem instantânea para alguém que está em Portugal, isso é.
Tenho resistência ao vídeo clip.
Dirão que louco sou. Pois pareço não viver nessa sociedade emocionante, na qual um jovem mata com tal velocidade num game que fico boquiaberto. Talvez precisássemos do Doutor Simão Bacamarte, ou então de Erasmo de Roterdã.
Mas, que implicância é essa com o vídeo clip? Nenhuma implicância, mas como tudo resvala na alma, aqui me toco.
Quando ouço uma canção, tenho por ela um referencial, que é a coisa mais importante em minha vida no contexto e na alma da canção, pois se não sabe, há uma alma misteriosa nas coisas da arte... Até no silêncio de uma biblioteca os espíritos encantados piscam... E essa presença das vozes que não morrem, só lá, na biblioteca não virtual... A virtual é uma necessidade hoje, e faz parte do nosso espírito, mas...
Recentemente caminhei pela cidade, espantalho repleto de luzes azuis, tímido e ao mesmo tempo tão ensolarado que se encontrasse o Carlitos numa calçada meus olhos desaguariam...
Entrei num sebo, só para azucrinar com o mormaço que a cidade estava desprezando... Quis ver capas de gibis antigos, adoro isso. O maior sebo da cidade respondeu: não tem nenhum. Nenhum!? Nem o “Espírito que anda”, nem o Gasparzinho, nenhum fantasma... E nem O Sombra e nem uma sombra de dúvidas. Compraram todos. Colecionador? Não, para pôr na Internet...
Acontece que a canção tem um nascimento, tem um momento em que ela entrou em sua alma... Onde estava eu quando ouvi tal canção? Minha camisa era branca, ou azul? Eu estava numa varanda? Num parque de diversões? Era luar? Gotejava orvalho? Havia neblina? Sol? Ferrovia? Mormaço? Era Março ou Abril e um colibri abria "o tempo que o tempo tem"?
Uma delas, eu estava ao redor da igreja matriz de Itaquera, “o vento afasta uma lágrima que começa a rolar no meu rosto”... O alto falante, e a quermesse repleta de meninas coloridas circulando para o deleite e o devaneio desses moços que se emocionam com uma canção assim...
Cada canção vai na ventania, no galope da mansidão... Cada canção é como as cores aquareladas de um céu que jamais retornará, apesar da impressão de que todos os azuis são iguais na pureza cristalina de cada manhã,
A canção que tem um histórico em minha vida, uma gênese, um abrupto chegar, essa canção é única para mim, e só eu a tenho dessa forma... Assim como acontece com você. A neutralidade e a leveza dos acordes que acordam os nossos sentires no roteiro dos fragmentos cotidianos, nada poderia abalar isso.
E o vídeo clip é uma construção artística que deveria estar em exposições de arte contemporânea, pois não diz exatamente para mim o que a canção é... Mas na contextualização de uma exposição contemporânea poderá muito se expressar.
A profusão de imagens de um vídeo clip é pura subjetividade. Tem algo a ver com o artista, com a sua visão, com a sua criatividade, e diz sobre ele, sobre o outro. Isso é algo extraordinário, que precisaria ser melhor retocado numa pesquisa.
Prefiro um cantor cantando, apenas... Mas também prefiro ainda ouvir a canção, seja num rádio ou num disco... A voz e a canção, são coisas do vento, do ar, são coisas que não pedem passagem, que abrem sem ajuda as portas do meu coração...
A teimosia em ser menino é a que me emociona nas cores de um livro infantil, e a teimosia do meu coração em pulsar daquela mesma forma quando ouvi tal canção naquela tarde que não se foi para sempre... Essas coisas não se perdem, na verdade elas nos salvam.
Alguns vídeos clips são belos, com uma exuberância de imagens que até emocionam, mas, acreditem, trata-se de subjetividade, de um sentir que não corresponde ao intocável seguro cais da chegada de uma canção em mim...
MARCIANO VASQUES
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