domingo, 7 de agosto de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA

FANTASMAS DA VIDA INTEIRA
 
Os fantasmas atemorizaram o meu castelo de ilusões. Difícil precisar quando eles chegaram. Também é incerta a data do início da edificação do castelo. Mas eles se instalaram e não quiseram mais arredar pé. Decidiram por conta própria que não mais cairiam na estrada.

Na verdade, decidiram com o meu auxilio. Graças a minha inestimável ajuda estabeleceram pousada definitiva em meu castelo. Transformaram um espaço exclusivamente meu em moradia.
Atrevidos tornaram-se com o passar dos anos parte constituinte do meu castelo a tal ponto que chegou o momento em que não era mais possível pensar em um sem pensar no outro.
Tantas vezes olhei para a minha impressionante fortaleza e os vi lá dentro! Circulando como se fossem os verdadeiros donos da construção.
Quando resolvi expulsá-los, vi que a tarefa iria ser medonha, e vi também que teria que fazer bem mais. Teria que derrubar o castelo.
Parece fácil derrubar um castelo erguido sobre a areia, um castelo que com o tempo vai se tornando, como seus estranhos habitantes, parte integrante de nossa alma.
Quando pela primeira vez olhei para ele, imponente, feito de aparências, audacioso, desafiador, e pensei que teria que destruí-lo, para que os fantasmas também desaparecessem, senti um estremecimento percorrer todo o meu corpo. Nervuras, tórax e membros.
Estava então diante do maior empreendimento da minha vida. Derrubar um castelo construído por mim e alimentado pelos mesmos hóspedes durante tanto tempo.
Pus-me a tentar decifrar o tempo da chegada dos fantasmas. Tinha eu quatorze anos? Tinha vinte? Sete? Que tarefa imensa a minha! Tentar a genealogia dos fantasmas. Tentar buscar a origem, o nascedouro de cada um, tentar abrir a cortina do palco tantas vezes estéril que foi a minha vida e visualizar no campo impressionante da memória a entrada triunfal ou sorrateira do primeiro.
A entrada de cada fantasma, o alojamento, a decisão de ficar e governar a minha vida, os meus passos: como terá de fato acontecido tal coisa?: Uma palavra rude? Uma frase dita por algum adulto? Um olhar severo? O que afinal motivou e abriu as portas e os imensos e labirínticos corredores do meu precioso castelo para tão cruéis moradores?
Tarefa extenuante, porém decisória, firme, sensata, absolutamente límpida, para que a decisão pudesse afinal ser tomada: o castelo precisava ruir, ser transformado em poeira, ser dissolvido como numa nuvem cósmica.
Quem me ajudaria nessa tarefa? Perguntei ao vento. A resposta veio cortante e definitiva e me apavorou: Ninguém. Eu não teria ajuda de nenhuma criatura. A tarefa de demolir, pulverizar o castelo era exclusivamente minha. Não poderia contar com nenhum auxilio. Mas, por onde começar? Pelos frágeis alicerces aparentemente inabaláveis?
Cada detalhe do castelo era feito com as ilusões, mescladas com o medo, que é o escorrimento ácido e pegajoso que sempre saiu das entranhas de cada fantasma.
Constatei espantado que me tornei com o passar dos anos um equilibrista, convivendo entre ilusões e o medo às vezes pavoroso vindo dos fantasmas. Pus-me quase sem notar a caminhar no tênue fio tentando não cair. Tornei-me o mestre do equilíbrio e aprendi a sair com maestria ileso das maiores armadilhas.
A fortaleza construída na areia custou-me caro, pois me impediu de lutar adequadamente e a manejar com destreza a espada na luta pela vida.
Até a compreensão de que a luta pela vida devia começar no terreno da realidade e só sofreria o seu primeiro impulso diante do entendimento da urgência de uma limpeza nos porões do castelo, tive que aperfeiçoar o meu equilíbrio insensato ao mesmo tempo em que gastava em gestos extravagantes as minhas energias fornecendo nutrientes para os fantasmas.
Extravagantes no sentido da própria inutilidade, da sensação de oco, de vazio, de desperdício que sempre me acompanhava após cada gesto, pelo fato de não revelar acréscimos em minha vida.
Tantas vezes experimentei a sensação de estar diante de gestos improdutivos, que nada acrescentavam, que apenas forneciam alimentos aos incômodos e traiçoeiros habitantes do meu castelo, enquanto roubavam de mim as chances de uma vida genuína.
Enquanto me ocupava de alimentá-los buscava refúgio dentro do castelo.
Circular nos corredores da minha fortificação alimentando os fantasmas foi minha ocupação durante os anos em que me enfraqueci.
Passei a dar ouvidos aos estranhos moradores, a tal ponto de aceitá-los como um poder agindo sobre mim e guiando as minhas indecisões.
A cada manifestação dos fantasmas mais eu me encolhia e mais me acomodava no castelo.
Fui percebendo que quanto mais alimentava os fantasmas mais o castelo se expandia, ficava enorme, o teto mais alto, as torres longas e aparentemente infinitas.
O castelo sobre a areia foi ficando cada vez mais indestrutível.
As ilusões foram transformadas em alimento e caí definitivamente num círculo vicioso, até que mirei lá embaixo e me vi rodeando sem nunca chegar a qualquer lugar que seja. Recebendo o alimento generoso das ilusões que se tornavam com o passar dos dias as guardiãs do castelo, impedindo a minha saída.
Reconheci cada fantasma em medos inúteis que me impediram de sair do castelo. A idéia de que sair seria perigoso, de que lá fora estaria a vida tornou-se para mim algo atemorizante. O conforto das ilusões tornou-se sedutor a tal ponto que passei a me orientar por ele.
Os fantasmas criaram inimigos onde eu só teria aliados. Transformaram em desconfiança as relações mais produtivas que a vida me ofereceu e espalhou estilhaços de incertezas e dúvidas que foram transformados numa barreira intransponível. Um entulho pesado e difícil de ser removido.
Os fantasmas criaram uma espécie de paranóia que passou a culpar os outros pelos meus fracassos, que na maioria das vezes nada mais foram do que representações da minha falta de iniciativa.
O processo que culminou na decisão de enfrentar e destruir os fantasmas e ao mesmo tempo derrubar o castelo foi lento e persistente.
No momento em que parti para a luta compreendi que estava preparado para enfrentar o verdadeiro responsável pelas ramificações do medo, da insegurança, da falta de confiança, da timidez, da falta de iniciativa. Era o castelo.
É nele e dele que partem as forças que atuavam dentro de mim. O castelo das ilusões.
Compreendi encantado que não são coisas distantes as ilusões e os medos, as incertezas, a falta de luta. São como irmãos. Estão, vigorosamente juntos. Um penetrando dentro do outro. As ilusões e as incertezas, as fraquezas, os medos e todos os sentimentos que impedem o ser humano de atingir a sua consciência de liberdade.
Um dia contarei com detalhes como foi a minha luta com os atemorizantes fantasmas e como foi a minha gloriosa luta pela demolição do castelo. Como percebi de imediato que alicerces construídos na areia criam lodos e limos na alma. De tal forma ficam fincados, que parecem feitos com o mais duro concreto malhado por ferro.
Sou aquele que venceu os fantasmas e derrubou o seu castelo de ilusões.
Ilusões que por ventura foram importantes na minha fase de crescimento, mas que depois se tornaram um entrave, um obstáculo, um mal.
Ilusões que passaram a sugar as minhas energias e geraram os fantasmas dos quais nunca me livrei por falta de consciência e disposição de luta.
Hoje sei o quanto é gratificante e maravilhoso olhar para os destroços e saber que destruí aquele castelo de ilusões e exterminei os fantasmas.
Como é gratificante ver que nenhuma ilusão será mais real do que a vida, com toda a sua força e todo o seu encanto. Vida construída diariamente. Vida que atirei sobre os fantasmas, soterrando-os com o golpe derradeiro.
O impacto da enorme rocha vida enterrou para sempre os antigos moradores do castelo que foi pulverizado.
O que antes era areia movediça e se apresentava como um castelo deslumbrante, acabou. Os fantasmas que pareciam indestrutíveis, foram extintos.
A batalha foi gigantesca, mas tudo não passou de apenas decisão.

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