domingo, 31 de outubro de 2010

DOMINGO PEDE PALAVRA - 32

POETAS DA ALMA DO BRASIL


Um dia ele esteve em Santos. O cego em Santos no início da década de 60. A poesia dos sertões, cravada na alma daquele homem, se espalhou pelas calçadas da linda cidade.
Cego Aderaldo entrevistado pela Tribuna de Santos. Acontecimento extraordinário nas páginas do jornal litorâneo.
Chegou o Cego Aderaldo! -era assim que o povo pobre do nordeste recebia o poeta quando ele chegava em alguma casa, em alguma venda, em alguma rua da vila. Uma festa. O cantador que trazia alegria para aquela gente. Todos o amavam, era mais que amor. Era proteção, zelo excessivo. Cego Aderaldo estava ramificado em cada planta, estava nos seixos, na poeira e no vento.
Um dia, tremendo em Juazeiro. Quem viu aquele homem imenso suando jamais esqueceu tal cena. Ele esperava pelo padre.
“- Cego Aderaldo! Aí vem o Padre Cícero!”, gritava alguém enquanto um sorriso ocupava toda a largura do seu rosto. Ele, o cantor do povo, o poeta querido, ia ser recebido pelo padre.
O cantador do passado brasileiro, uma das últimas vozes de um sertão sofrido, um dia declarou a si mesmo em sua imensa solidão: - Um homem não deve pedir esmola! - Andou sem rumo pelo lugar em cego desespero, sem conseguir encontrar a saída.
À noite dormiu pesado e na madrugada sonhou um sonho estranho: que cantava numa feira. Na manhã acordou com a estrofe decorada. Interpretou tal acontecimento como uma intervenção divina.
“Um homem que canta sabe se impor!” –pensou. Saiu pelas ruas. Passou a cantar e a ganhar alimento doado pela gente generosa. Voltava diariamente para casa carregando uma sacola repleta de arroz, feijão, farinha...
O homem que um dia chorou no triste bonito enterro de sua mãe, nunca precisou pedir esmola. Seu canto passou a ser a sua sobrevivência. Em todos os locais onde aparecia, uma pequena multidão se acotovelava para vê-lo e ouvi-lo. O cearense nascido em Crato no final do XIX e que perdeu as cores aos 11 anos, que cantava para sobreviver e se recusou a pedir esmolas se tornou nas bocas e corações do povo uma lenda. Eu o conheci em 1978, exatamente um século do seu nascimento. Fiquei sabendo da sua existência através do meu aluno Francisco Moreira de Holanda. O homem que eu alfabetizava foi quem pela primeira vez me falou de Cego Aderaldo.
“Nome que começa aberto em rosa”, assim falou o querido poeta mineiro, Drummond, no Natal de 1980. O poeta começava da forma mais bela e doce a nova década. Como é preciso prestar atenção nos poetas! E aqui no Brasil, como é preciso prestar atenção em Carlos Drummond.
“A pessoa mais importante de Goiás, rica apenas de poesia” disse-nos ele. Obrigado poeta. Ele falava de uma doceira e mostrava ao Brasil aquela mulher gigante: Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nascida exatamente no ano em que Aderaldo ficou cego.
Que nome bonito, poeta! Cora, nome de coral, de colares, Cora Coralina. A mulher de Goiás que aos 76 anos teve o seu primeiro livro publicado. Cora Coralina aos 90 anos e Drummond a conheceu. Ele, o responsável por mostrá-la ao Brasil. Como se já não bastasse a sua própria presença no solo desta pátria, nos ofereceu uma Cora Coralina feita de doces.
“Acredito nos jovens à procura de caminhos novos abrindo espaços largos na vida” , isso é Cora Coralina, a mulher terra, que fazia também poemas para os gatos da sua cidade, que sempre desejou ter em seu lar um retrato de Lampião. Mulher doceira, rendeira, um pouco cangaceira, portuguesa. Assim se definiu.
Tinha vinte anos quando nasceu no município de Assaré, no sul do Ceará, o expoente maior da poesia sertaneja, a figura que se tornou legendária. Quer compreender o sertão nordestino? Vá até Patativa do Assaré.
O homem –ave aos oito anos ficou órfão do pai e teve que trabalhar para ajudar a sustentar o irmão. Talvez o Brasil atual esteja órfão dos homens cegos que cantam e das mulheres bondosas que vendem doces nas vielas e ladeiras do país.
Mão calejada, numa noite no programa do Jô deixou o apresentador impressionado. E quem há de negar aquele espanto? Só respondia rimando. O que aconteceu com a memória daquele homem é algo surpreendente numa terra avessa aos benefícios da memória.
Numa tarde fria o sertanejo que conhecia o sertão em carne e osso teve um encontro espetacular em sua vida. Esteve numa praça chamada Chamego com Luís Gonzaga. O compositor quis de toda maneira comprar a poesia “A Triste Partida” que virou bela música. Mas Patativa era mais que um cearense, mais que um sertanejo, era um legitimo cantador da sua gente de espinhos e esperanças. Não vendeu. Entrou na autoria da letra que embelezou as rádios do Brasil em Lua.
Andando de canoa ficou encantado com a lenda de uma cobra grande que engravidou uma índia.
A índia teve dois filhos e um deles, Norato, foi obrigado a matar a irmã e como castigo passou a transformar-se num belo rapaz. O homem que nasceu no Rio Grande do Sul quando Cora Coralina era a pequena Aninha que corria em Goiás, ia se transformando em folhagens, enquanto com as lendas da Amazônia se encantava.
O menino que na infância observava a mãe escrevendo versos em alemão, passou a acreditar nos seres folclóricos da mata amazônica.
No outro extremo, distante de Cego Aderaldo, participou da semana de Arte Moderna. Seu poema maior, o qual demorou 7 anos para escrever, é uma obra –prima da literatura brasileira. Raul Bopp, o poeta da Cobra Norato.
Stella Leonardos também escreveu a lenda da cobra em forma poética, e há para essa lenda muitas versões. Mas poema certamente enfeitiçado pelas verdes matas de mistérios guardados, e estranhamente belo, só o do gaúcho.
Aos 31 anos pagou para publicar “A cinza das Horas”, uma edição com 50 poemas. Pagou 300 mil-réis por 200 exemplares. Pernambucano também nascido no final do XIX, tinha três anos quando nasceu a menina goiana.
Viajando em um bonde com Machado de Assis recita um trecho de Os Lusíadas.
Um dia esqueceu os originais num sanatório em Coimbra.
Dois anos depois da sua primeira obra o pai custeava o livro CARNAVAL no qual figura o poema “Os Sapos”. Ele, o poeta tuberculoso que preferia o lirismo dos bêbedos, já era uma estrela da vida inteira. Vida que, segundo ele, o poeta da simplicidade, não teve grandes acontecimentos e que se revelou por inteira em sua obra.
Desde o ano de 1917, quando financiou com os próprios recursos o seu primeiro livro até a publicação de sua última obra em 1963, chamada “Estrela da Tarde”, Manuel Bandeira nunca abandonou o humor, constantemente presente em sua obra poética.
Em 1925 ganha o seu primeiro dinheiro com a literatura. Em 1930 publica “Libertinagem” , edição de 500 exemplares, outra obra custeada pelo próprio autor. 47 exemplares de “Estrela da Manhã”, essa foi a tiragem do livro financiado por um grupo de amigos. Um deles ofertou o papel.
Aos 51 ganha o primeiro dinheiro com poesia. Manuel Bandeira.
Em abril de 1964 ele estava no Chile e escreveu “Os Estatutos do Homem”, que deveria estar pendurado nas portas de cada apartamento para que a cidade ficasse mais cidadã. Pendurado como encontrei certo dia na porta do apartamento da amiga Rosane Regis, a jornalista que conheci quando apareceu em minha região para entrevistar o Dom Angélico.
Como “ainda é tempo de esperança” preciso falar um pouquinho dele. Talvez seja ou deveria ser uma necessidade imperiosa no café da manhã. Poeta do Amazonas. “Vida sempre a serviço da vida”.
Lembro-me de um artigo do seu poema. Se não me engano, é o último. Diz assim: “ Quando a liberdade for definitivamente algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada for sempre o coração do homem” , o Brasil e sua gente será então para sempre Thiago de Melo.
Tem um sujeito solitário lá no Pantanal que andou dizendo que para ele a poesia é mais do que nunca necessária. Para lembrar aos homens o valor das coisas simples e gratuitas. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. A poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens, desenvolvendo em cada um o senso do lúdico. Ele também lembrou o vicio da poesia de amar as coisas jogadas fora. E essa fala me lembrou do poema de Ferreira Gullar, que também é atencioso para com as coisas que se perdem. Manoel de Barros.
Cada vez que me reencontro com Paulo Freire, ele reaparece em minha mente. Parece que se alojou num canto de saudades da educação pela pedra.
Manuel Bandeira escreveu poemas para os meninos carvoeiros (e Jorge Amado, um romance para os Capitães da Areia) e ele, João Cabral de Melo Neto, a sigla mais poética do país, o poeta que não datava os seus poemas, um grande inventor.
Rejeitou a musicalidade que distrai e preferiu os ritmos pedregosos em que se tropeça a qualquer momento. Outro belo acervo da poesia do nosso país.
Um poeta português chegou no Brasil e escolheu Curitiba para morar. Lutava por suas idéias (o Brasil está repleto em sua história literária de homens teimosos - ver Monteiro Lobato) e amava a natureza. Por isso escreveu poemas infantis para transmitir esse amor para os pequenos. Há nesse país quem considere a literatura infantil uma literatura menor. Que coisa boba.
Seu livro de poemas, o primeiro, é um marco na história da literatura infantil no Brasil. Ganhou o primeiro premio da II Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Sidónio Muralha. Poeta brasileiro.
Quis hoje falar um pouco sobre poetas tão diferentes, mas que compõem o universo que pode ser chamado de “poetas da alma do Brasil”.

MARCIANO VASQUES

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