Marciano Vasques A DOENÇA DO SENHOR FÉLIX |
O senhor Félix acordou mais cedo do que o habitual e resolveu dar uma caminhada. Após fazer o café e se barbear com a velha navalha, foi buscar os pães. Como sempre fazia, parou na revistaria para espiar as capas dos jornais. Leu as notícias sem aflição. Um ônibus incendiado com passageiros, os preparativos da sua cidade para as comemorações de final de ano...
O céu estava varrido, fiapos de nuvens vagavam no azul vaidoso. Um esmero de esmeralda na umidade do capinzal. Ele caminhava.
Finalmente chegara o dia. Após mais de uma semana de espera iria obter o resultado do exame. Estava ansioso e preocupado. Seu caso fora encaminhado para uma junta médica, mas preparava-se para tudo, fosse qual fosse a enfermidade.
Listou todas as doenças e a sua porcentagem de chance em cada uma. Não era diabético nem sofria de hipertensão, mas por causa da idade, - mais de cinqüenta anos-, fez a lista.Glaucoma encabeçando a relação.
"E então, doutor?".
"Sente-se" solicitou o médico e fez a revelação inesperada. "O senhor tem uma doença grave".
"É grave, doutor?". "Sim", prosseguiu o profissional, discorrendo sobre a doença, que, além de grave era rara, tão rara que o senhor Felix era o primeiro caso registrado na humanidade.
"O senhor inaugurou a doença. Já pensou na importância disso?"
"Obrigado, doutor"
Após saber que era irreversível, visto que a medicina nada poderia fazer com uma doença desconhecida, saiu do hospital e caminhou desconsolado pela calçada.
Desde que começou a rodopiar num rodamoinho interno por causa das tonturas inexplicáveis, decidiu empreender uma peregrinação que incluiu o candomblé, o espiritismo e pastores evangélicos, até desembocar nos médicos.
Não tinha escapatória. Fugira a vida toda dos profissionais de saúde, mas sempre pensou que de nada adiantaria tal fuga. Um dia iria direto para o matadouro, essa a imagem que fazia sempre que observava o avanço da idade, seja numa ruga exposta, no aumento do peso, na falta de fôlego e nas dores leves e misteriosas que aos poucos iam se aconchegando em suas juntas.
O último contato que havia tido com médicos, segundo suas memórias deliciosas, acontecera na infância. Eram as brincadeiras com duas meninas, uma priminha e uma vizinha, na qual ele fora o protagonista. Por ter sido uma brincadeira tão inocente e prazerosa não considerava contraditório guardar nesse tipo de memória uma coisa da qual se esquivara a vida toda, a lembrança do médico.
Vivia fugindo dos doutores desde que era um rapaz exibicionista nas praias santistas. O nadador que percorria as bocas das docas, das donzelas e das senhoras, das mesas de bilhar, do cais e dos morros. Quem não ouvira falar de suas façanhas? É claro que o exercício aquático diário fornecia a ele uma resistência sem par. Isso virou lenda pessoal. O Santista era imbatível. Era o Peixe.
Nos quartos de pensão, no jogo do bicho, entre as prostitutas, os sorveteiros, os vendedores de coco verde, na balsa, em todos os lugares só se falava do Peixe. No dia em que subiu a serra teve a impressão de que a cidade inteira estava na estação ferroviária para se despedir dele. "Adeus Peixe" - Gritavam as pessoas. O som da locomotiva não abafava as vozes que tamborilavam em seus ouvidos. Foi a mais prazerosa viagem da sua vida e a mais comovente.
Mas agora estava ali, perplexo numa calçada chuvosa. Repentinamente desfez a caminhada e resolveu sentir-se só, como não fazia faz tempo. Uma solidão autêntica, escolhida, que pode ser burilada, aos poucos lapidada.
Que reconforto! Perdera no tempo a última vez que visitara solidão tão fecunda. Se não fosse incômodo para as pessoas que passavam, gargalharia bem alto. Ergueu os olhos para os edifícios sombrios e deu-se conta de que tudo aos poucos revestia -se de um tom cinza que já estava sendo pincelado pelas cores da súbita alegria interior que o preenchia.
Abriu o portão. Entrou e uma saudade possessiva tomou-lhe o resto da tarde. Desde quando não via as coisas que encantaram o seu crescimento?
Locomotiva subindo a serra. Um guarda-chuva aberto numa manhã chuvosa, a poeira, vistosos jardins invadidos por tonalidades arroxeadas, os brinquedos, um carrinho de madeira largado num canto de uma sala de estuque e tacos, chuchus pendurados em cercas de arame farpado, flor de maracujá, romã, parreiras, um cachorro enrolado em si num ocaso friorento, capinzais, orvalho, lençóis quarando, cabelos em coifa. Para onde fora tudo isso?
Quando começou a esquecer dos seus olhos?
Retalhos de pano, retrós de linha branca, uma xícara bordada por uma pintura antiga, os rostos dos meninos que conheceu na infância, a menina com algodão - doce parada no meio do parque olhando para ele, as moças conversando na quermesse, alguém bordando roseirais e uma borboleta bordô na borda de uma toalha.
Perseguido pelas imagens do seu passado entrou em casa, e sentiu que elas estavam em algum lugar dentro dele, protegidas contra a insensatez de um cotidiano áspero e infrutífero.
Num sobressalto descobriu quantas coisas não enxergava faz tempo. A mulher falou qualquer coisa e ele a olhou profundamente. Ela estranhou. "Por que está me olhando?"
Ele permaneceu diante dela.
"Que estranho! Você não está bem? Estou assustada. Pare de me olhar e conte o resultado do exame. O que disseram os médicos?"
Ele contou a novidade.
"Uma doença rara? Que doença é essa?"
"Vou ficar cego".
"Isso é doença rara? O que mais tem no mundo é cego!"
"Mas a minha cegueira é diferente. Eu sou o único."
"Explique, por favor"
"Eu vou ficar cego, mas vou enxergar";
"Que doidice é essa homem?"
"Verdade. Vou ficar cego vinte e três horas por dia."
Então, pela primeira vez falou calmamente com a sensação de que realmente estava sendo ouvido, como se estivesse num bar. Explicou a doença rara. Ficaria cego quase o dia inteiro, sendo que durante uma hora por dia, isso mesmo, apenas uma hora, ele enxergaria.
"Quer dizer que você vai ter uma hora por dia em que vai poder ver tudo? Durante uma hora você não será cego? Nunca ouvi falar disso".
"Nem eu. Sou o primeiro"
"E quando isso vai acontecer? Em qual hora do dia você não será cego?"
"Ao amanhecer, as sete da manhã, eles calculam."
"Vou ter que acordar cedo todos os dias?
"Acho que sim."
"Acordei cedo durante anos, agora que estou aposentada, vou ter que fazer novamente isso?
"Também poderei ver você dormindo. Deve ser uma imagem tão bonita"
"Endoidou homem? Nunca olhou pra mim nem acordada, quanto mais dormindo. Agora vem com esse papo de imagem bonita"
"Agora é diferente, preciso economizar o olhar, não, não, não é isso que eu quero dizer. Agora preciso usar o olhar, usar e abusar"
Então algo explodiu em sua mente. Passou a vida inteira sem aprender a olhar para as coisas, ou melhor, quando era menino, olhava demais, os seus olhos percorriam a vastidão do azul, as nuvens, as cores da seda na pipa, a valsa do vento no bailado das folhagens, as pequeníssimas criaturas que se movem, rastejam, saltitam, fiapos de peixes prateados riscando o ar dos entardeceres no rio longínquo e águas deslizando entre pedregulhos alisados pela erosão, mas depois que cresceu...
Ao se tornar adulto ocupou-se a tal ponto que não reparou que a visão a cada dia nos incontáveis minutos desperdiçados ao pouco se turvava. Com ela adulterada, largou de vez o gosto pelas coisas que antes enfeitiçavam os seus olhos.
"Quando vai começar essa doença?
"Dentro de uns dois ou três dias, eles acham. Vou descansar um pouco. Pode me fazer um favor?"
"O que você quer?"
-"Ligue para Marinha". Assim ele chamava a pequena Mara. Sua única filha.
-"Pra quê?"
-"Quero vê-la na semana que vem"
"Mas você estará cego na semana que vem! Além do mais, ela mora longe e tem seus compromissos".
-"Talvez a doença já esteja mesmo funcionando pra valer e poderei vê-la às sete da manhã, lembra? Quero apreciar os contornos do seu rosto, seus traços, as suas rugas, as fibras da sua face, a sua pele. Quero sentir como é o seu olhar, quero rever o seu sorriso"
-"Acho que sua filha nem mais sorriso tem. Com tantos problemas que ela arrumou na vida acha que vai ficar sorrindo...Se você tem saudade não é melhor olhar no álbum? Nós temos muitas fotos dela..."
-"Foto, filme, nada se compara a ter diante de mim o seu rosto..."
-"Sei, as sete da manhã. Você acha que todo mundo estará disponível para você todas as manhãs?"
"Bem, vou me deitar. Preciso descansar."
No dia seguinte lá estava ele fazendo anotações num caderno. Quinze minutos para a leitura de um livro num dia, e para os gibis no outro. Iria se tornar conhecido como o cego do sebo, tal a sua disposição de vasculhar todos os sebos da cidade em busca de gibis antigos. Precisaria de alguém a seu lado. A esposa. Será que ela estaria disposta a compartilhar essas peregrinações? Claro que no escuro estaria a tatear os sebos para então no seu horário de ver ter diante de si as capas dos gibis que encantaram a sua infância.
E seguiu o dia afora com as anotações. Quinze minutos para a sua rua, para ver as pessoas da sua vizinhança, para observar os detalhes das casas, dos quintais. Quinze minutos para o rosto da companheira, quinze para os apetrechos da casa, os objetos, os quadros na parede. Não, é muito pouco tempo para cada coisa, ou talvez tempo demasiado, quiçá precisaria de apenas cinco minutos para contemplar um sabugueiro que sempre desprezou, o vermelho repleto de fuligem de um telhado sob o mormaço de um inigualável azul acanhado.
Sentiu que era necessário enquadrar melhor o tempo de acordo com a sua visão. Descobriu que o supérfluo não cabia mais no seu olhar. Começou a se desesperar. Como poderia ver tudo o que era realmente essencial? Os museus, os cinemas... Sim, poderia procurar nas locadoras os filmes que gravaram em sua memória as imagens mais gratificantes, aquelas que encharcaram os seus olhos no escuro do cinema, e aquelas que o marejaram. Mas, e o cinema? Nada poderia se comparar ao silêncio e ao envolvimento de uma sala de cinema. Como seria possível resolver isso, se os cinemas todos abrem a partir das dez da manhã? E os museus? As cores e os traços dos artistas que embelezaram a alma humana? Os museus não estariam abertos no horário da sua visão. Que desespero. O pior foi lembrar que a última vez em que estivera no cinema sentira falta daquele silêncio respeitoso que marcara profundamente a construção da sua alma em tempos passados.
Mas tem a internet, e ele até aprendeu a lidar com isso. Sabe como se conectar e sabe que a internet é uma das maravilhas contemporâneas. Todas as imagens estarão lá, as pinturas, os grandes artistas, os maiores espíritos da humanidade na tela do computador. Sim, o seu problema estaria solucionado. Internet e pronto. Não precisaria sair de casa. Até as paisagens mais bonitas do mundo estariam diante dele num simples clicar.
Não, não teria graça ficar durante horas sentado em uma cadeira. Horas? Não é mais possível falar de horas. O ideal mesmo seria ir aos museus, aos cinemas, caminhar nas praças, na areia, no capinzal. Seus olhos estariam acometidos de uma fome insaciável de vida ao vivo. De cores que pudessem ser tocadas pelos olhos.
Para quem deveria escrever? Para o prefeito? O governador? Para que autoridade deveria escrever solicitando, reivindicando, implorando para que os cinemas, os museus, e também o zoológico, pudessem funcionar em horário diferenciado.
"Loucura!". Pensou. Iriam recusar. Diriam que só pelo fato de ter um olho que enxerga apenas uma hora por dia estaria pensando que era um rei? Não, não daria certo, seria inútil escrever para quem quer que fosse. Teria que se virar sozinho e ver sem a ajuda de ninguém. O drama estava estabelecido. E ele estava disposto a ser o mais fiel protagonista.
Abrir os olhos, não deixar escapar nada do espetáculo do mundo que se apresentaria para ele aí no seu cantinho, na sua impossibilidade de viajar, ali mesmo, na sua casa, no seu quarteirão, no seu vilarejo, na sua cidade. Tudo estaria à disposição dos seus olhos nos locais onde ele pudesse se mover. Tudo seria visto, fartamente visto, iluminado pela luz que vê, sorvido com a mirada contemplativa dos seus olhos. O seu olhar se estenderia sobre tudo, o alcance da sua visão estaria na plenitude das coisas verdadeiramente necessitadas de contemplação.
Cada cena do cotidiano, cada botão em seus detalhes, cada tecido de cada roupa com suas cores. Ele não poderia mais perder tempo olhando sem ver. A cada dia teria uma hora para lapidar o olhar, aperfeiçoar, para o deixar cada vez mais eficaz, mas significativo.
Repentinamente recordou-se de que com ele acontecia algo que já fazia parte da sua forma de ser. Ocorreu se lembrar de que quando conversava com alguém quase nunca olhava para o rosto da pessoa com quem falava, quanto mais os olhos. Qual a cor dos olhos de todos aqueles com quem convivia no dia a dia? Suas sobrinhas, suas duas netinhas, seus filhos, seus amigos, sua comadre, suas irmãs. Quem teria os olhos verdes? Ou castanhos? Ficou impressionado com a sua descoberta e não soube precisar quando isso começou a fazer sentido, quando foi incorporado à sua vida, e agora estaria na escuridão, quase o dia inteiro.
Como poderia recuperar essas coisas? Teria apenas uma hora por dia, e as pessoas do seu convívio estariam quase todas dormindo e não poderiam viver em função dele, cada qual alterando a sua rotina por causa do seu problema. Mas se tinha algo de bom nele é que não aprendera a desistir e fincou pé nesse empreendimento. Iria catalogar mentalmente as cores de todos os seus olhos. Começaria pelas netinhas. Depois iria para os adultos.
Não havia mais tempo para lamentações. O ideal seria que a sua doença, ou melhor, a sua visão, ocorresse na metade do dia ou ao entardecer, quando todos já estariam acordados. Mas como seria dessa maneira, então iria à luta. Pra que chorar sobre o leite derramado? Melhor seria ordenhar um novo leite. Era o que ele estava fazendo. Traçando planos, estratégias, ações. Teria que dar um jeito de ver todos e tudo naquela hora da manhã. Estava ávido de ver.
Quem acompanhou tudo de perto podia sentir nele uma expectativa, uma ansiedade nunca antes sentida. Ele realmente causava a impressão de que não agüentava mais esperar pela coisa, na verdade demonstrava sentir uma vontade incontrolável de que começasse logo. Estava vivendo uma tortura sem trégua. Parece exagero, mas ele queria explodir de curiosidade. Era como se fosse iniciar uma grande aventura, a maior da sua vida.
Já estava incomodado com tanta visão, talvez pelo fato de ter tido a consciência de que a visão o dia inteiro era um convite ao desperdício. Estava claro para ele que a preguiça acompanha o ser humano. Que as pessoas desperdiçam quando têm demais. Por isso tanta correria diária, e tanto concreto e uma lacuna cada vez maior de jardins, de borboletas e cores. O mundo estava perdendo as cores. Até o azul celeste já fazia tempo estava nublado, acinzentado, ou melhor, nem era mais azul, era pura poluição. E ninguém se dava conta nem parecia sentir falta do espetáculo estelar.
De vez em quando as pessoas iam ao planetário e tudo estava resolvido, ou então se empanturravam com as cores da tela da televisão. Ele ficou abismado e foi difícil sair do abismo quando descobriu que as pessoas nem iam mais para fora ao anoitecer. Todos no sofá numa espécie de hipnose coletiva a tal ponto que o pai nem olhava pro rosto da filha quando ela falava. Isso é uma verdade que muitos podiam testemunhar. Pessoas quase não mais conversavam, quanto mais se falar.
Tudo isso estava angustiando o nosso paciente que não via o momento de começar a exercer a sua doença. Como seria proveitoso pra ele! Como seria gratificante ter uma hora apenas por dia de luz, de cores, e poder se gratificar, se lambuzar e se encantar com as cores, as formas e a beleza do mundo. Tanto tempo perdido, desperdiçado, jogado fora, mas agora seria diferente. Com uma hora só por dia ele saberia ver de verdade, cada coisa, cada objeto, cada cor, cada forma. Estava aprendendo na sua ansiedade que quando se tem pouco é mais fácil de se administrar.
Poderia olhar com delicadeza, com olhar de menino, aquele olhar que havia ficado lá atrás, poderia ver com o olhar de poeta. Logo ele que nunca levou os poetas a sério! Quem diria, como a vida é curiosa! Agora ele teria o seu olhar lapidado, tudo iria se revelar em cada detalhe. O que é realmente essencial seria revelado no seu novo estilo de ver.
Ele jamais seria um cego, e aos poucos começou a perceber que jamais voltaria a ser um, pois é o que ele havia sido a vida inteira. Esbanjando visão a tal ponto que a desperdiçou quase o tempo todo após ser menino.
Estava plenamente convencido de que aquele que tem demais pouco valoriza, quem tem em abundância perde a noção da importância do que tem. Os tesouros são diluídos no cotidiano, as verdadeiras riquezas são aniquiladas diariamente. Uma aurora, um ocaso, um gafanhoto em sua coreografia verde e exuberante, as cores de todas as cores, até mesmo as cores da poesia, que estão ocultas na escrita.
Ocultas, mas à disposição daquele que conhece a visão. Sim, é preciso conhecer o que se possui para que se possa valorizar e amar, pois senão de que adianta ter? Alguém que não conhece a própria visão jamais estará apto para a generosidade do mundo, que se esparrama em cores e formas desde um marisco com seu rastro até a mais distante estrela.
Olhar novamente como um menino era o que estava disposto a fazer, erguer a sua mirada para as coisas efetivamente simples e profundas, as que nos tocam com maestria. Apreciar o que solicita atenção e desprendimento. Assim preparava o seu olhar para ser poeta e contava em cada novo amanhecer com a chegada da sua doença.
O céu estava varrido, fiapos de nuvens vagavam no azul vaidoso. Um esmero de esmeralda na umidade do capinzal. Ele caminhava.
Finalmente chegara o dia. Após mais de uma semana de espera iria obter o resultado do exame. Estava ansioso e preocupado. Seu caso fora encaminhado para uma junta médica, mas preparava-se para tudo, fosse qual fosse a enfermidade.
Listou todas as doenças e a sua porcentagem de chance em cada uma. Não era diabético nem sofria de hipertensão, mas por causa da idade, - mais de cinqüenta anos-, fez a lista.Glaucoma encabeçando a relação.
"E então, doutor?".
"Sente-se" solicitou o médico e fez a revelação inesperada. "O senhor tem uma doença grave".
"É grave, doutor?". "Sim", prosseguiu o profissional, discorrendo sobre a doença, que, além de grave era rara, tão rara que o senhor Felix era o primeiro caso registrado na humanidade.
"O senhor inaugurou a doença. Já pensou na importância disso?"
"Obrigado, doutor"
Após saber que era irreversível, visto que a medicina nada poderia fazer com uma doença desconhecida, saiu do hospital e caminhou desconsolado pela calçada.
Desde que começou a rodopiar num rodamoinho interno por causa das tonturas inexplicáveis, decidiu empreender uma peregrinação que incluiu o candomblé, o espiritismo e pastores evangélicos, até desembocar nos médicos.
Não tinha escapatória. Fugira a vida toda dos profissionais de saúde, mas sempre pensou que de nada adiantaria tal fuga. Um dia iria direto para o matadouro, essa a imagem que fazia sempre que observava o avanço da idade, seja numa ruga exposta, no aumento do peso, na falta de fôlego e nas dores leves e misteriosas que aos poucos iam se aconchegando em suas juntas.
O último contato que havia tido com médicos, segundo suas memórias deliciosas, acontecera na infância. Eram as brincadeiras com duas meninas, uma priminha e uma vizinha, na qual ele fora o protagonista. Por ter sido uma brincadeira tão inocente e prazerosa não considerava contraditório guardar nesse tipo de memória uma coisa da qual se esquivara a vida toda, a lembrança do médico.
Vivia fugindo dos doutores desde que era um rapaz exibicionista nas praias santistas. O nadador que percorria as bocas das docas, das donzelas e das senhoras, das mesas de bilhar, do cais e dos morros. Quem não ouvira falar de suas façanhas? É claro que o exercício aquático diário fornecia a ele uma resistência sem par. Isso virou lenda pessoal. O Santista era imbatível. Era o Peixe.
Nos quartos de pensão, no jogo do bicho, entre as prostitutas, os sorveteiros, os vendedores de coco verde, na balsa, em todos os lugares só se falava do Peixe. No dia em que subiu a serra teve a impressão de que a cidade inteira estava na estação ferroviária para se despedir dele. "Adeus Peixe" - Gritavam as pessoas. O som da locomotiva não abafava as vozes que tamborilavam em seus ouvidos. Foi a mais prazerosa viagem da sua vida e a mais comovente.
Mas agora estava ali, perplexo numa calçada chuvosa. Repentinamente desfez a caminhada e resolveu sentir-se só, como não fazia faz tempo. Uma solidão autêntica, escolhida, que pode ser burilada, aos poucos lapidada.
Que reconforto! Perdera no tempo a última vez que visitara solidão tão fecunda. Se não fosse incômodo para as pessoas que passavam, gargalharia bem alto. Ergueu os olhos para os edifícios sombrios e deu-se conta de que tudo aos poucos revestia -se de um tom cinza que já estava sendo pincelado pelas cores da súbita alegria interior que o preenchia.
Abriu o portão. Entrou e uma saudade possessiva tomou-lhe o resto da tarde. Desde quando não via as coisas que encantaram o seu crescimento?
Locomotiva subindo a serra. Um guarda-chuva aberto numa manhã chuvosa, a poeira, vistosos jardins invadidos por tonalidades arroxeadas, os brinquedos, um carrinho de madeira largado num canto de uma sala de estuque e tacos, chuchus pendurados em cercas de arame farpado, flor de maracujá, romã, parreiras, um cachorro enrolado em si num ocaso friorento, capinzais, orvalho, lençóis quarando, cabelos em coifa. Para onde fora tudo isso?
Quando começou a esquecer dos seus olhos?
Retalhos de pano, retrós de linha branca, uma xícara bordada por uma pintura antiga, os rostos dos meninos que conheceu na infância, a menina com algodão - doce parada no meio do parque olhando para ele, as moças conversando na quermesse, alguém bordando roseirais e uma borboleta bordô na borda de uma toalha.
Perseguido pelas imagens do seu passado entrou em casa, e sentiu que elas estavam em algum lugar dentro dele, protegidas contra a insensatez de um cotidiano áspero e infrutífero.
Num sobressalto descobriu quantas coisas não enxergava faz tempo. A mulher falou qualquer coisa e ele a olhou profundamente. Ela estranhou. "Por que está me olhando?"
Ele permaneceu diante dela.
"Que estranho! Você não está bem? Estou assustada. Pare de me olhar e conte o resultado do exame. O que disseram os médicos?"
Ele contou a novidade.
"Uma doença rara? Que doença é essa?"
"Vou ficar cego".
"Isso é doença rara? O que mais tem no mundo é cego!"
"Mas a minha cegueira é diferente. Eu sou o único."
"Explique, por favor"
"Eu vou ficar cego, mas vou enxergar";
"Que doidice é essa homem?"
"Verdade. Vou ficar cego vinte e três horas por dia."
Então, pela primeira vez falou calmamente com a sensação de que realmente estava sendo ouvido, como se estivesse num bar. Explicou a doença rara. Ficaria cego quase o dia inteiro, sendo que durante uma hora por dia, isso mesmo, apenas uma hora, ele enxergaria.
"Quer dizer que você vai ter uma hora por dia em que vai poder ver tudo? Durante uma hora você não será cego? Nunca ouvi falar disso".
"Nem eu. Sou o primeiro"
"E quando isso vai acontecer? Em qual hora do dia você não será cego?"
"Ao amanhecer, as sete da manhã, eles calculam."
"Vou ter que acordar cedo todos os dias?
"Acho que sim."
"Acordei cedo durante anos, agora que estou aposentada, vou ter que fazer novamente isso?
"Também poderei ver você dormindo. Deve ser uma imagem tão bonita"
"Endoidou homem? Nunca olhou pra mim nem acordada, quanto mais dormindo. Agora vem com esse papo de imagem bonita"
"Agora é diferente, preciso economizar o olhar, não, não, não é isso que eu quero dizer. Agora preciso usar o olhar, usar e abusar"
Então algo explodiu em sua mente. Passou a vida inteira sem aprender a olhar para as coisas, ou melhor, quando era menino, olhava demais, os seus olhos percorriam a vastidão do azul, as nuvens, as cores da seda na pipa, a valsa do vento no bailado das folhagens, as pequeníssimas criaturas que se movem, rastejam, saltitam, fiapos de peixes prateados riscando o ar dos entardeceres no rio longínquo e águas deslizando entre pedregulhos alisados pela erosão, mas depois que cresceu...
Ao se tornar adulto ocupou-se a tal ponto que não reparou que a visão a cada dia nos incontáveis minutos desperdiçados ao pouco se turvava. Com ela adulterada, largou de vez o gosto pelas coisas que antes enfeitiçavam os seus olhos.
"Quando vai começar essa doença?
"Dentro de uns dois ou três dias, eles acham. Vou descansar um pouco. Pode me fazer um favor?"
"O que você quer?"
-"Ligue para Marinha". Assim ele chamava a pequena Mara. Sua única filha.
-"Pra quê?"
-"Quero vê-la na semana que vem"
"Mas você estará cego na semana que vem! Além do mais, ela mora longe e tem seus compromissos".
-"Talvez a doença já esteja mesmo funcionando pra valer e poderei vê-la às sete da manhã, lembra? Quero apreciar os contornos do seu rosto, seus traços, as suas rugas, as fibras da sua face, a sua pele. Quero sentir como é o seu olhar, quero rever o seu sorriso"
-"Acho que sua filha nem mais sorriso tem. Com tantos problemas que ela arrumou na vida acha que vai ficar sorrindo...Se você tem saudade não é melhor olhar no álbum? Nós temos muitas fotos dela..."
-"Foto, filme, nada se compara a ter diante de mim o seu rosto..."
-"Sei, as sete da manhã. Você acha que todo mundo estará disponível para você todas as manhãs?"
"Bem, vou me deitar. Preciso descansar."
No dia seguinte lá estava ele fazendo anotações num caderno. Quinze minutos para a leitura de um livro num dia, e para os gibis no outro. Iria se tornar conhecido como o cego do sebo, tal a sua disposição de vasculhar todos os sebos da cidade em busca de gibis antigos. Precisaria de alguém a seu lado. A esposa. Será que ela estaria disposta a compartilhar essas peregrinações? Claro que no escuro estaria a tatear os sebos para então no seu horário de ver ter diante de si as capas dos gibis que encantaram a sua infância.
E seguiu o dia afora com as anotações. Quinze minutos para a sua rua, para ver as pessoas da sua vizinhança, para observar os detalhes das casas, dos quintais. Quinze minutos para o rosto da companheira, quinze para os apetrechos da casa, os objetos, os quadros na parede. Não, é muito pouco tempo para cada coisa, ou talvez tempo demasiado, quiçá precisaria de apenas cinco minutos para contemplar um sabugueiro que sempre desprezou, o vermelho repleto de fuligem de um telhado sob o mormaço de um inigualável azul acanhado.
Sentiu que era necessário enquadrar melhor o tempo de acordo com a sua visão. Descobriu que o supérfluo não cabia mais no seu olhar. Começou a se desesperar. Como poderia ver tudo o que era realmente essencial? Os museus, os cinemas... Sim, poderia procurar nas locadoras os filmes que gravaram em sua memória as imagens mais gratificantes, aquelas que encharcaram os seus olhos no escuro do cinema, e aquelas que o marejaram. Mas, e o cinema? Nada poderia se comparar ao silêncio e ao envolvimento de uma sala de cinema. Como seria possível resolver isso, se os cinemas todos abrem a partir das dez da manhã? E os museus? As cores e os traços dos artistas que embelezaram a alma humana? Os museus não estariam abertos no horário da sua visão. Que desespero. O pior foi lembrar que a última vez em que estivera no cinema sentira falta daquele silêncio respeitoso que marcara profundamente a construção da sua alma em tempos passados.
Mas tem a internet, e ele até aprendeu a lidar com isso. Sabe como se conectar e sabe que a internet é uma das maravilhas contemporâneas. Todas as imagens estarão lá, as pinturas, os grandes artistas, os maiores espíritos da humanidade na tela do computador. Sim, o seu problema estaria solucionado. Internet e pronto. Não precisaria sair de casa. Até as paisagens mais bonitas do mundo estariam diante dele num simples clicar.
Não, não teria graça ficar durante horas sentado em uma cadeira. Horas? Não é mais possível falar de horas. O ideal mesmo seria ir aos museus, aos cinemas, caminhar nas praças, na areia, no capinzal. Seus olhos estariam acometidos de uma fome insaciável de vida ao vivo. De cores que pudessem ser tocadas pelos olhos.
Para quem deveria escrever? Para o prefeito? O governador? Para que autoridade deveria escrever solicitando, reivindicando, implorando para que os cinemas, os museus, e também o zoológico, pudessem funcionar em horário diferenciado.
"Loucura!". Pensou. Iriam recusar. Diriam que só pelo fato de ter um olho que enxerga apenas uma hora por dia estaria pensando que era um rei? Não, não daria certo, seria inútil escrever para quem quer que fosse. Teria que se virar sozinho e ver sem a ajuda de ninguém. O drama estava estabelecido. E ele estava disposto a ser o mais fiel protagonista.
Abrir os olhos, não deixar escapar nada do espetáculo do mundo que se apresentaria para ele aí no seu cantinho, na sua impossibilidade de viajar, ali mesmo, na sua casa, no seu quarteirão, no seu vilarejo, na sua cidade. Tudo estaria à disposição dos seus olhos nos locais onde ele pudesse se mover. Tudo seria visto, fartamente visto, iluminado pela luz que vê, sorvido com a mirada contemplativa dos seus olhos. O seu olhar se estenderia sobre tudo, o alcance da sua visão estaria na plenitude das coisas verdadeiramente necessitadas de contemplação.
Cada cena do cotidiano, cada botão em seus detalhes, cada tecido de cada roupa com suas cores. Ele não poderia mais perder tempo olhando sem ver. A cada dia teria uma hora para lapidar o olhar, aperfeiçoar, para o deixar cada vez mais eficaz, mas significativo.
Repentinamente recordou-se de que com ele acontecia algo que já fazia parte da sua forma de ser. Ocorreu se lembrar de que quando conversava com alguém quase nunca olhava para o rosto da pessoa com quem falava, quanto mais os olhos. Qual a cor dos olhos de todos aqueles com quem convivia no dia a dia? Suas sobrinhas, suas duas netinhas, seus filhos, seus amigos, sua comadre, suas irmãs. Quem teria os olhos verdes? Ou castanhos? Ficou impressionado com a sua descoberta e não soube precisar quando isso começou a fazer sentido, quando foi incorporado à sua vida, e agora estaria na escuridão, quase o dia inteiro.
Como poderia recuperar essas coisas? Teria apenas uma hora por dia, e as pessoas do seu convívio estariam quase todas dormindo e não poderiam viver em função dele, cada qual alterando a sua rotina por causa do seu problema. Mas se tinha algo de bom nele é que não aprendera a desistir e fincou pé nesse empreendimento. Iria catalogar mentalmente as cores de todos os seus olhos. Começaria pelas netinhas. Depois iria para os adultos.
Não havia mais tempo para lamentações. O ideal seria que a sua doença, ou melhor, a sua visão, ocorresse na metade do dia ou ao entardecer, quando todos já estariam acordados. Mas como seria dessa maneira, então iria à luta. Pra que chorar sobre o leite derramado? Melhor seria ordenhar um novo leite. Era o que ele estava fazendo. Traçando planos, estratégias, ações. Teria que dar um jeito de ver todos e tudo naquela hora da manhã. Estava ávido de ver.
Quem acompanhou tudo de perto podia sentir nele uma expectativa, uma ansiedade nunca antes sentida. Ele realmente causava a impressão de que não agüentava mais esperar pela coisa, na verdade demonstrava sentir uma vontade incontrolável de que começasse logo. Estava vivendo uma tortura sem trégua. Parece exagero, mas ele queria explodir de curiosidade. Era como se fosse iniciar uma grande aventura, a maior da sua vida.
Já estava incomodado com tanta visão, talvez pelo fato de ter tido a consciência de que a visão o dia inteiro era um convite ao desperdício. Estava claro para ele que a preguiça acompanha o ser humano. Que as pessoas desperdiçam quando têm demais. Por isso tanta correria diária, e tanto concreto e uma lacuna cada vez maior de jardins, de borboletas e cores. O mundo estava perdendo as cores. Até o azul celeste já fazia tempo estava nublado, acinzentado, ou melhor, nem era mais azul, era pura poluição. E ninguém se dava conta nem parecia sentir falta do espetáculo estelar.
De vez em quando as pessoas iam ao planetário e tudo estava resolvido, ou então se empanturravam com as cores da tela da televisão. Ele ficou abismado e foi difícil sair do abismo quando descobriu que as pessoas nem iam mais para fora ao anoitecer. Todos no sofá numa espécie de hipnose coletiva a tal ponto que o pai nem olhava pro rosto da filha quando ela falava. Isso é uma verdade que muitos podiam testemunhar. Pessoas quase não mais conversavam, quanto mais se falar.
Tudo isso estava angustiando o nosso paciente que não via o momento de começar a exercer a sua doença. Como seria proveitoso pra ele! Como seria gratificante ter uma hora apenas por dia de luz, de cores, e poder se gratificar, se lambuzar e se encantar com as cores, as formas e a beleza do mundo. Tanto tempo perdido, desperdiçado, jogado fora, mas agora seria diferente. Com uma hora só por dia ele saberia ver de verdade, cada coisa, cada objeto, cada cor, cada forma. Estava aprendendo na sua ansiedade que quando se tem pouco é mais fácil de se administrar.
Poderia olhar com delicadeza, com olhar de menino, aquele olhar que havia ficado lá atrás, poderia ver com o olhar de poeta. Logo ele que nunca levou os poetas a sério! Quem diria, como a vida é curiosa! Agora ele teria o seu olhar lapidado, tudo iria se revelar em cada detalhe. O que é realmente essencial seria revelado no seu novo estilo de ver.
Ele jamais seria um cego, e aos poucos começou a perceber que jamais voltaria a ser um, pois é o que ele havia sido a vida inteira. Esbanjando visão a tal ponto que a desperdiçou quase o tempo todo após ser menino.
Estava plenamente convencido de que aquele que tem demais pouco valoriza, quem tem em abundância perde a noção da importância do que tem. Os tesouros são diluídos no cotidiano, as verdadeiras riquezas são aniquiladas diariamente. Uma aurora, um ocaso, um gafanhoto em sua coreografia verde e exuberante, as cores de todas as cores, até mesmo as cores da poesia, que estão ocultas na escrita.
Ocultas, mas à disposição daquele que conhece a visão. Sim, é preciso conhecer o que se possui para que se possa valorizar e amar, pois senão de que adianta ter? Alguém que não conhece a própria visão jamais estará apto para a generosidade do mundo, que se esparrama em cores e formas desde um marisco com seu rastro até a mais distante estrela.
Olhar novamente como um menino era o que estava disposto a fazer, erguer a sua mirada para as coisas efetivamente simples e profundas, as que nos tocam com maestria. Apreciar o que solicita atenção e desprendimento. Assim preparava o seu olhar para ser poeta e contava em cada novo amanhecer com a chegada da sua doença.
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