segunda-feira, 7 de março de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 50

Marciano Vasques
  


A ALMA PEREGRINA

 
Gostaria de falar um pouco sobre a presença do feminino na Literatura Infantil, na Mitologia e na Poesia.

A mulher, sempre tão cantada em versos, é protagonista em histórias inesquecíveis. Na mitologia a sua importância é fundamental.

Quando os deuses ficam zangados com Prometeu e decidem punir a humanidade, castigá-la para assim atingirem ao titã que tanto incomodara as divindades com seu amor exagerado pelos humanos a ponto de enganar os deuses, eis que eles decidem o pior castigo que a humanidade poderia receber. Criam a mulher.

Forjada do barro, Pandora, a cheia de dons, recebe das divindades os poderes femininos, entre os quais a astúcia, o dom de seduzir, a malícia e a capacidade de mentir. Segundo Hermes, o mensageiro dos deuses e o último a lhe transmitir os poderes, a fêmea viveria para enganar. Espalharia o amor, mas também a discórdia, a dor e o sofrimento. E essa maldição estaria presente em todas as fêmeas.

Em Orfeu a mulher aparece na figura de uma ninfa de nome Eurídice, que enfeitiça o coração do cantor desde que ele a encontra na floresta.

Eurídice dança para Orfeu e assim o reanima, pois estava arrasado pelo motivo de ter sido expulso de sua própria morada pelo pai, o rei Eagro, que preferia um filho guerreiro e não um com a alma de artista.

Cresce o amor de Orfeu e Eurídice. E então surge um brusco acontecimento que acaba com a felicidade do casal. Ao ser perseguida por Aristeu, que queria possuí-la à força, incapaz que era de conquistar uma mulher, acontece um acidente e ela morre. Sua alma é levada para o mundo subterrâneo para ser propriedade de Hades, o senhor absoluto do inferno, cuja menção do próprio nome atemorizava os gregos, sendo tão terrível que o seu nome passou a ser também o do seu reino.

Então acontece algo extraordinário: pela primeira vez o homem desce ao inferno para buscar a sua amada. Orfeu tenta desesperadamente resgatar a alma de Eurídice, e quando a perde definitivamente, destrói a sua própria vida, abandonando-se na floresta até ser destruído por um grupo de mulheres que queriam o seu amor, e não suportavam a sua fidelidade à eterna amada.

Na Literatura Infantil a sua presença é marcante e ela está a nos ensinar, sendo ora uma menina que vai pela floresta a levar a cestinha de biscoito para a sua vovó e despreza os conselhos da mãe para que não converse com estranhos no caminho. A sua imprudência tornar-se-á cara: o lobo é terrível, o grande lobo. Sempre a espreitar, sempre ameaçando a paz e a tranqüilidade da pequena. Depois a menina é uma adolescente que também vai visitar a vovó, mas, ao encontrar um lenhador na floresta a menina - com a fita verde no cabelo - vê nela projetada a sombra do lobo e não é mais a mesma. Agora caminha na floresta com um lobo no pensamento, mas antes de adolescer, a menina, com o uso da palavra, venceu o medo do lobo. Tanto repetiu a palavra lobo que esta se transformou em bolo. O seu chapeuzinho não é mais vermelho, agora é amarelo.

Em outra narrativa ela é trancafiada numa torre alta na qual passa a viver isolada do mundo sem contato com o grande lobo. Enclausurada vive uma boa parte da sua vida no alto da torre e o único amor que conhece é o da bruxa, até que acontece o inevitável: o aparecimento do homem.

As personagens são notáveis e sua função é ora ensinar os humanos, ora educar os homens, sendo que assim cumpre a sua missão primordial, o de educadora. Como Branca a ensinar os anões, e a bruxa, a nos mostrar que a força de alguns sentimentos como o da inveja são medonhos. Há que se ter um cuidado permanente, há que se viver uma vigilância extremada. A inveja é poderosa e só poderá ser combatida com sabedoria, prudência, e produção. Ela é fruto da alma incapaz de produzir, fruto da falta de ocupação, de produtividade. Por isso se inveja, sobretudo a beleza, o amor, tal como Afrodite a invejar Psique, tal como as irmãs a invejarem a pobre gata-borralheira, desprezada e escravizada, que tal como o patinho feio de Andersen que sofre uma transformação profunda ao descobrir-se um cisne, transforma-se numa linda e poderosa princesa: a Cinderela. Por puro encantamento do príncipe, eterna utopia edificada na imaginação patriarcal criadora.

Então ora ela é uma fada, ora uma princesa, ora uma bruxa, uma feiticeira, mas sempre estará presente com a sua força a ilustrar e a preencher a nossa infância de magia, de encantamento e de sabedoria.

E é mãe. Na mitologia aparece como Demeter que enlouquece de dor ao perder a filha querida que é raptada por Hades e levada para ser sua esposa no seu reino subterrâneo. Enquanto em outra história a mulher é Penélope a esperar incansavelmente pelo seu eterno amado Ulisses, sempre a tecer um infindável tapete que à noite desmancha e durante o dia tece, enganando assim aos seus pretendentes, para quem promete se entregar assim que o tapete esteja terminado, se em dado momento é Penélope a nos mostrar a natureza da mulher tecelã, que nasceu para tecer e vai tecendo e tecendo o mundo e os destinos, as histórias e as vidas, em outro é a esposa de Hades, a bela Perséfone, a mais triste das mulheres. A do mais trágico destino.

Quando a mãe enlouquece de dor quem sofre é a humanidade. Demeter é a personificação da natureza, sendo que ao ter o coração pela perda da filha esmagado, traz para o mundo o inverno, a devastação, a fome e a miséria humana. Só com o retorno de sua querida filha volta a sorrir e a natureza floresce. O amor da mãe pela filha salva a humanidade.

Então surge a Cecília Meireles com a sua poesia e escreve o poema mais sentido, mais dolorido, que é o “Lamento da Mãe Órfã”, pois para ela, quando a mãe perde o filho, é ela que fica órfã.

E da Poesia vamos à Literatura: inicialmente estaremos diante da primeira aparição da mulher valorizada não apenas pelos seus atributos, mas sim pela sua inteligência, pela sabedoria, pelo uso da palavra. Pela primeira vez ela aparece assim na Literatura e salva as mulheres e a humanidade. Eis um dos grandes legados do belo povo árabe que tantas contribuições maravilhosas trouxe para a humanidade. Sherazade, a contadora de histórias. Ao contar histórias nas mil e uma noites, ela salva a sua própria vida e inaugura o grande patrimônio da contadora de histórias.

Uma delas salvou o menino José Lins de Rego, que era doente e foi curado pelo hábito de ouvir as histórias da velha Totônia, a negra que percorria os engenhos para contar histórias para as crianças.

Depois vamos encontrar uma mulher que levou para as paginas várias mulheres, inesquecíveis, fortes e marcantes. Clarice Lispector, que um dia numa feira nordestina num bairro carioca ao sentir o coração apertado pela turquesa da saudade imensa de Recife onde vivera a sua maravilhosa infância, e de onde jamais deveria ter saído, cria mentalmente os diálogos de sua “Macabéia”, personagem marcante da escritora que homenageia uma governanta comovente que chorava com ela a morte de uma de suas galinhas.

As suas personagens femininas revelam-nos o estado de alienação do individuo diante da vida não vivida. A vida sufocante do dia a dia, a anulação gradual da mulher diante do cotidiano do lar, onde é muitas vezes oprimida, às vezes sutilmente, às vezes escancaradamente, e em casos extremos chega a ser espancada e muitas vezes sendo a principal vítima de conceitos machistas e perigosos, como, por exemplo, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Clarice consciente de que a condição social deixa a pessoa arrancada de sua própria vida. As personagens de Clarice estão empenhadas e comprometidas com a busca para romper com os grilhões do falso viver, da vida sem autenticidade vivida no espaço em que se chama lar. Ela, a vitima do “Psiu!”. A que caminha pela rua e ouve diversos “Psiu!”. Na calçada, quando vai ao cinema, ao parque, ao supermercado. E em casa ouve o “Psiu!” da opressão familiar, sobretudo do homem. É o “Psiu!”, ordenando a ela que não se expresse, que se cale, que se mantenha em silêncio.

E então a sua valoração vem através dos presentes que costuma receber nas datas comemorativas. O seu valor da mulher está no presente. A panela de pressão que ganha de presente é a valoração da cozinheira, e assim por diante.

Ela que tanto enriquece a nossa infância, seja a infância da criança nos maravilhosos contos de fada, seja a infância da humanidade com a Mitologia, seja na literatura, sempre a nos ensinar, seja como uma guerreira a participar da edificação de uma história real, a nossa Maria Bonita é oprimida no lar, que muitas vezes reproduz a tirania de uma sociedade, que a quer bela, cada vez mais. Eis a vontade patriarcal do capitalismo. Transformá-la na eterna Pandora, a que vive para seduzir. Estranha mulher esta que tanto incomoda.

E assim nos despedimos. Eu a lembrar do verso de uma poetisa chamada Cristina Rosseti:

“Ninguém nunca amou a minha alma peregrina”

Um comentário:

Regina Sormani disse...

Caro amigo Marciano,
Obrigada pela maravilhosa matéria!
E veja só: a velha Totônia já era, naquele tempo uma "DOUTORA DA ALEGRIA.
Bjão,
Regina Sormani