sábado, 29 de janeiro de 2011

DOMINGO PEDE PALAVRA — 45




A CACHORRA E A AMADA AMANTE

Sinto necessidade de falar de uma canção do Roberto. O cantor de "rosto de moça" (Ver Clarice Lispector) gravou uma canção revolucionária para o tempo. Revolucionária pelo fato de que a época era de repressão e preconceito contra a mulher. E surgiu nas rádios "Amada Amante", quando a palavra "Amante" era envolvida por um intocável silêncio e adjetivos impronunciáveis. O sujeito da rádio garantia que o cantor não se referia à amante, mas a esposa. Roberto jamais faria uma canção falando de amante.
Disse que a época era de repressão e preconceito contra a mulher: hoje não tem repressão, só preconceito, exacerbado, da forma nunca vista antes. Não tem repressão institucionalizada, eu quis dizer, governamental, decretada, pois as mulheres estão apanhando cada vez mais nos esconderijos das casas periféricas. Nunca os homens adquiriram tantos poderes contra as mulheres como agora. E o machismo está mais forte. "Esse cara está louco!" poderão dizer. "Deve ser escritor!". E o que tem a ver Roberto com a sua amada amante hoje? Tudo! A juventude desconhece. A mesma juventude que ouve a letra de algumas músicas e canta a maior desvalorização e destruição da dignidade da mulher, como jamais se vira. Qualquer dúvida, é só ouvir algumas músicas com suas letras. Protagonismo juvenil? Esquerdistas atrasadíssimos talvez ainda ousem falar isso. Talvez a mesma espécie de esquerdistas como alguns que conheci do Partido Comunista do Brasil, que odiavam de forma doente Roberto Carlos, que com a música Amada Amante se revelava para mim mais avançado que muita gente que eu conhecia e estava na prontidão de discursos de enfrentamento com a ditadura. A política realmente nunca andou de mãos dadas com a cultura.
A letra da música batia de frente com terríveis padrões moralistas que vigoravam a pleno vapor no avassalador militarismo daquele início de anos setenta.
De amada amante à cachorra. A concorrência é desleal hoje para o professor e o escritor de Literatura Infantil. Talvez seja o momento de retomada e resgate de artistas, vozes, letras e canções que embalaram um outro Brasil, afinal tão recente, visto que "A vida é um sopro". A vida? Um conto ligeiro.
Amada Amante correspondeu a um criativo e desabrochador momento da cultura do Brasil. Devemos muito a Caetano Veloso e Ney, mas também ao Roberto — No caso, por algumas canções, entre as quais a maior, Amada Amante — Realmente, a juventude precisa conhecer, os olhos devem abrir. Considero urgente um repasse musical para uma inversão de valores atuais e resgate da sensatez.
Se hoje, na era pós-xuxa, vivemos um desmonte, um desmanche, ora, é preciso não esquecer o que esses caras edificaram. Caetano e seus amigos, Tom Zé, Taiguara, todos, e também o cantor de Amada Amante.
O YouTube está aí, dirão. Certo. Mas por si só não moverá as consciências. É necessário que cada um possa mostrar que em outros dias versos transformaram consciências e alteraram a realidade cultural do Brasil, mesmo que hoje esses versos possam parecer por demais simples, como "Esse amor sem preconceito/sem saber o que é direito/faz as suas próprias leis..."
O Brasil precisa avançar, e isso significa retroceder no tempo. Resgatar.
Na região onde moro, acreditem, meninas engravidaram sentadas ao ritmo das canções cujas letras a faziam lembrar que eram cadelas e cachorras.
Talvez esteja na hora do retorno da atenção.

MARCIANO VASQUES

Um comentário:

VELOSO disse...

Amigo Marciano que texto desabafo lindo profundo e comovente é preciso sim indignar e lutar contra isso um texto como esse mostra que ainda existe esperança!